Redescobrindo a Palavra de Deus
Um dia fala disso a outro dia;
uma noite o revela a outra noite.
Sem discurso nem palavras,
não se ouve a sua voz.
Mas a sua voz ressoa por toda a terra,
e as suas palavras, até os confins do mundo.
(Sl 19.2-4)
Estou de brinquedo novo. Eu bem que poderia dizer isso de forma mais séria, mas então mataria a alegria e o encanto. Ganhei uma dessas bíblias temáticas, intitulada A Bíblia da Formação Espiritual, que tem o intuito de ajudar a ler a Escritura não só com a razão, mas também com o coração. “Muitas pessoas”, diz a sua introdução, “estão buscando por um jeito novo de ler a Bíblia; não como um texto a ser dominado, mas como uma história que nos convida a buscar um novo estilo de vida.” Eu sou uma dessas pessoas sedentas por essa palavra através da qual Deus fala ao nosso coração e encantado pela forma como Ele faz exatamente isto, e sempre novamente.
Temos a nossa história com a Bíblia, na busca para que ela permaneça uma palavra a vivificar os nossos corações, orientar os nossos passos e tonificar a nossa relação com o Deus Triúno e uns com os outros.
Da formulação para o coração
Ainda tenho umas das minhas primeiras bíblias. Era uma das chamadas “Bíblias de Lutero” e, em língua alemã, falava ao meu coração e rabiscava a minha vocação. É que nasci para a vida espiritual num movimento de avivamento pietista alemão, no sul do Brasil. Como parte de uma expressão fundamentalista da fé cristã, ali se acentuava o caráter autoritativo e inspirado da Bíblia. Foi lá que descobri o que carrego comigo até hoje: a Bíblia é palavra inspirada de Deus. Na caminhada de fé fui conhecendo várias formas e formulações através das quais se expressava e defendia essa autoridade e inspiração da Bíblia. Me cansei delas e vi que afirmar uma rígida inspiração das Escrituras não significa deixar Deus falar realmente conosco. Aprendi que formulações não são iguais à palavra que Deus fala e que o que Ele fala é muito mais do que uma palavra. A palavra de Deus é pessoa e assim Deus fala conosco: de pessoa para pessoa. Da pessoa de Deus para a nossa pessoa humana, alentando nosso coração, orientando as nossas opções, convocando-nos para o serviço ao outro e dando à nossa esperança a fragrância da eternidade.
Do conhecimento para a vivência
Da minha Bíblia alemã fui para o grego e o hebraico, a fim de ler o texto original em que foram escritos os textos sagrados. Vindo de um contexto bíblico-fundamentalista, fui cair numa escola de teologia marcada pela teologia liberal, também alemã. Se antes se faziam afirmações dogmáticas de uma fé cercada de certezas, agora eu aprendia a fazer perguntas. Ali, como dizia um amigo meu, a primeira afirmação em relação ao texto bíblico era que “assim não pode ter sido. Vamos ver como foi”. Estudar teologia, num contexto assim, significava mergulhar num processo de dissecação do texto bíblico. O pressuposto desta abordagem é que o processo científico racional está acima do texto como se apresenta e ele precisa ser estudado a partir dos princípios científicos modernos.
Aprendi muita coisa acerca da Bíblia – que ela tem de ser entendida no seu contexto e interpretada a partir dele e que para se chegar ao conteúdo do que ela quer dizer é preciso aplicar vários processos de análise histórica, geográfica, gramatical e textual. Mas nada disso é suficiente e isso tudo nunca pode andar sozinho: é preciso reconhecer que Deus fala através desta palavra que é sua, que nós precisamos querer ouvir sua palavra e deixar que ela marque a nossa vida.
Apesar de anos de caminhada com a Bíblia, sou rejuvenescido por essa palavra, que não cansa de me abordar e transformar.
Surpreendido pela palavra!
Foi num sábado, lá no Canadá. No corredor de um convento, onde eu passaria um dia de retiro com um amigo, meus olhos captaram uma palavra que me cativou. Decidi copiá-la e, surpreso, descobri que era uma palavra bíblica! Meio envergonhado por não tê-la identificado, ainda assim ela me encantava e dizia algo que eu precisava ouvir; e logo a alegria e a gratidão suplantaram meu constrangimento. Tantos anos manuseando a Escritura e ainda não a conheço bem e continuo sendo surpreendido por ela!
Levou anos até eu aprender a ler a Bíblia com sede e cativamento. Não que eu tenha abandonado a necessidade de entendê-la por processos racionais e aplicando princípios sólidos de interpretação; mas cheguei à conclusão de que eles são insuficientes para marcar o coração e nortear os passos. Hoje estou convencido de que careço deixar que a minha sede de vida e de Deus cheguem aos pés da sua Palavra, que o pulsar do meu coração seja alimentado pelo sopro do seu Espírito e que a minha esperança receba nela o sopro de vida do Deus criador e mantenedor de todo ser que respira. Descobri que só quando a verdade da sua Palavra se transforma na verdade do coração é que conseguimos perceber Deus no seu amor e discernir a sua ação em nossas vidas como desenhos de graça. Isso é muito bom e é suficiente.
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Publicado originalmente na Revista Ultimato, ed. 300
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