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Foto do escritorValdir Steuernagel

E vá entender esse Deus

Memórias de uma viagem

Deus escolheu as cousas loucas do mundo para

envergonhar os sábios, e escolheu as cousas fracas

do mundo para envergonhar as fortes; e Deus

escolheu as cousas humildes do mundo, e as

desprezadas, e aquelas que não são, para reduzir

a nada as que são; a fim de que ninguém se

vanglorie na presença de Deus. (1 Co 1.27-29)


Povo de Deus! Esse negócio é assustador


Era noite mas estava difícil de dormir. Eu me jogava na cama, de um lado para outro, e mil coisas passavam pela minha cabeça. Algumas boas, mas outras um lixo, como é comum acontecer nesses momentos solitários.


Como um martelo, uma pergunta batia na minha cabeça: Por que aqui? Por que este povo? Afinal, trata-se de um lugar confuso; embora recém-chegado, eu já o havia percebido. Etnicamente o povo é dividido. Politicamente ele é acirrado e religiosamente é beligerante. Aqui se briga pela terra e pela água. Pelas convicções e pela interpretação da história. Brigar parece ser um estado de espírito.


É que eu estava em plena Terra Santa. Lugar conhecido como sendo Israel, o conhecido e escolhido povo de Deus. Lugar de geografia divina. Terra que foi marcada pelos passos de Jesus. E eu procurava dormir naquela madrugada em plena Jerusalém...


Mas vir a Jerusalém para ser lembrado das coisas de Deus pode ser um contra-senso. Pois, se eu busco retiro espiritual, o que eu colho por aqui é a agonia. Se eu quero ver a santidade, o que eu encontro é a divisão. Se eu busco pela sinalização do que significa ser povo de Deus, até parece que Deus mesmo é o que eu não encontro por aqui.


O que eu vejo são soldados armados, revistas policiais irritantes, perguntas desconfiadas. Eu ouço pessoas compartilharem acerca de roubo de terra, roubo de dignidade. Roubo de auréola-- eu ironizo para sobreviver -- onde a santidade parece ter buscado asas para voar! Que coisa de louco, esse lugar chamado Israel, que esconde e revela tantas coisas complicadas quando visto além da indústria do turismo e de uma teologia determinista cega! Povo de Deus? O que é isso, meu Deus do céu que te revelas na terra?! Estarias por aqui, nesta terra?


Do alto de uma casa, onde fomos conhecer um projeto social, o nosso guia aponta para os quatro cantos da cidade, indicando a sua divisão. “Lá vivem os muçulmanos”, diz ele; “naquela área, os judeus. Ali os armênios e naquele espaço os cristãos.” Jerusalém é uma cidade dividida. Em tudo que é sentido: étnica, política e religiosamente. Mas seria esse o lugar que Deus escolheu para ser “a terra que mana leite e mel”? Essa terra de fel?


A igreja do sepulcro é o espelho da nossa cristandade


Mais tarde naquele dia o guia nos leva a um dos lugares famosos de Jerusalém: a Igreja do Santo Sepulcro. Um lugar sagrado onde Jesus foi sepultado. O lugar, indica a pesquisa, deve estar certo, embora o exato sepulcro seja incerto. Abaixando-me um pouco, eu entro numa espécie de gruta que nos deixa ver um túmulo daquele tempo. Eu reverencio o momento em que uma das pessoas do grupo chora baixinho, relembrando o sacrifício de Jesus. Eu, em silêncio, busco relembrar o significado desse lugar, mas os sinais ao meu redor me deixam em estado contraditório. Este, afinal, se constitui num encontro com a constantinização da igreja, onde a grandeza e a imponência da construção querem falar do poder. E aqui se vê e se sente o que significa a disputa do mercado religioso por parte da igreja. Afinal, cada um quer um pedaço deste templo e cada um quer vender o seu produto, mesmo que seja litúrgico.


Num dos apertados espaços e expostos altares o nosso grupo tenta cantar a estrofe de um hino que pergunta se nós estávamos com ele quando ele morreu por nós.


É claro que, como os discípulos, não estávamos lá no seu sofrimento e morte. Todos o abandonamos. Mas o que me incomoda também é o que fizemos depois. Mais tarde, no decorrer da história. Seja a igreja construída neste lugar por Helena, a mãe de Constantino, seja o que fizeram os arautos da cruzada cristã nos primeiros séculos deste milênio. E ambos os estilos arquitetônicos se misturam nesta demonstração de poder de conquista de espaço para a igreja.


Mas eu também não me sinto bem com esse jeito através do qual os diferentes grupos cristãos, sejam ortodoxos ou católicos, dividiram o espaço fisíco nesta igreja tão antiga: este canto é meu e este canto é teu, e em cada um deles montamos o altar segundo a nossa tradição. E o que se gera é uma grande confusão e competição nesse espelho do que tem sido a história da igreja.


O uso do poder e da força distância


Ir a Gaza, neste território palestino, era um itinerário importante nesta breve viagem ao Oriente Médio. Gaza é um lugar pobre e amontoado. É muita gente em pouco espaço e com poucos recursos. Mas foi lá, em pleno amontoado urbano, que eu vi estabelecido e abastecido um assentamento urbano judeu. Uma verdadeira fortaleza que, em contraste com a vizinhança e a pobreza palestina, significava um monumento de afronta e força por parte de Israel. “Inacreditável!”, eu não pude deixar de murmurar.


O resultado desse quadro é uma constante suspeita, beligerância e insegurança. Os soldados israelenses não podem descuidar da vigilância por um momento, que os palestinos reagem. Os próprios judeus não podem sair sem a companhia dos soldados, desarmados ou sozinhos das suas prisões, chamadas de assentamentos. E a vida se torna demais sufocante para ambos os lados.


É claro que não há uma solução fácil para os judeus e os palestinos. As explosões de guerra e a cotidianidade dos conflitos acompanhados das seguidas tentativas de alcançar a paz e o domínio no decorrer da história são um sinal deste fato. Mas não podemos deixar de reconhecer o fato de que o uso do poder e da força não cria aproximação, mas distanciamento. O assentamento judeu urbano em Gaza é testemunha desse fato.


É por isso que Deus caminha por uma outra avenida. Em Abraão ele convoca o povo para ser uma bênção. Essa vocação acompanha o povo de Israel e a igreja no decorrer da história. Ser povo de Deus, pois, se configura em caminhar na avenida da bênção. A radicalização dessa opção, da parte de Deus, termina na cruz. Cruz que indica o que significa ser esta bênção para a vida e a salvação do outro. Olhar, pois, para este assentamento judeu em plena Gaza foi um ensino, para mim, do que não significa ser povo de Deus. É por isso, pois, que todos precisamos relativizar e/ou destruir os nossos próprios asssentamentos.


Deus faz cada coisa!


Eu não tenho por que cansar vocês com esta minha viagem. O fato é que ela -- minha primeira viagem a Israel -- foi difícil para mim. É por isso que naquela noite, confuso pelo fuso horário e sem conseguir dormir, eu perguntava por que Deus havia escolhido um lugar como aquele. Lugar de divisão e conflito. Lugar inóspito, de morros e desertos. Lugar de carência de água. Lugar de sangue e fronteiras tão volúveis.


Como um vislumbre de luz, eu alinhavei uma resposta que na verdade não passava de uma outra pergunta: Será que é por isso? Será que Deus escolheu este lugar por não ter nada a oferecer e onde viver significa constantemente buscar pelos recursos para a sobrevivência? A sua viabilidade, pois, estaria vinculada à dependência de Deus?


Será que Deus escolheu este lugar porque ele é um espelho do conflito e da maldade humana, que está presente no decorrer da história, nos nossos relacionamentos e é tão visível neste lugar?


Será que Deus escolheu este lugar porque ele é sinal da surdez ao próprio Deus, numa demonstração histórica e política da própria rejeição a Deus?


Será que Deus escolheu este lugar para chorar -- chorar a rebeldia humana contra o próprio Deus e o estabelecimento da inimizade como padrão de relacionamento humano? Será que Deus molha esta terra com as suas lágrimas, tornando-a, num milagre, uma terra que mana leite e mel?


Será que é este lugar que nos mostra essa lógica de Deus que se fertiliza na ausência da possibilidade? Será que é este o lugar onde se torna tão claro que ele é o DEUS DA GRAÇA?


É nesta convicção que eu pego no sono... e vivo a vida.


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Publicado originalmente na Revista Ultimato.


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