O relato da criação em Gênesis 2 nos leva a um belo jardim. Ali, num gesto envolto em mistério, Deus fez nascer do solo todo tipo de árvores agradáveis aos olhos e boas para alimento (Gn 2:9). A linguagem do texto concilia beleza com suficiência; não há contradição entre a beleza e o desfrute dos recursos naturais, entre o cultivo e a preservação, num equilíbrio que proporciona dignidade, graça e bem-estar num ambiente comunitário. Nesse jardim plantado no Éden, para “os lados do leste”, nasce um rio que irriga o jardim à medida que vai criando os seus afluentes. (v. 8ss). O relato é absolutamente concreto. É nesse lugar criado que Deus nos coloca para juntos vivermos a vida com beleza e suficiência.
Ter espaço para respirar, andar, conviver, construir é bom! É verdade que muitos vivem em lugares que não escolheram e estão privados de significativos espaços de movimento. Muitos disputam espaços em grandes urbes onde nunca se para de construir e a população não para de crescer. Uns vivem em cidades poluídas onde mal se pode respirar, enquanto outros desfrutam ar puro em áreas verdes. Eu, aqui em Curitiba, agradeço por poder caminhar nos parques da cidade, ainda que ninguém se atreva a pescar os peixes que povoam os lagos poluídos. Deus nos deu espaço para viver e isso pode e deve ser celebrado.
Ouça os passos de Deus!
O que deixa o Éden mais bonito é que o próprio Deus nele caminha. O jardim tem a marca de Deus, o sopro de Deus e o cuidado de Deus. Aqui o vemos criar todas as coisas com graça e beleza e sentido. O ser humano é criado do pó da terra e nele Deus instila o seu próprio sopro – o fôlego da vida (2:7). Ele estabelece mecanismos de cuidado para que o ser criado não violente, nem a si mesmo nem àquele que a criou. Deus fala das possibilidades e dos limites aos quais seria necessário se submeter (2:16-17). E quando esse equilíbrio é rompido, ele mesmo toma providências e vai ao encontro deles: “Ouvindo o homem e sua mulher os passos do Senhor que andava pelo jardim quando soprava a brisa do dia...” (2:15-17 e 3:8).
A presença é uma marca de Deus. Ele não apenas cria como quem faz uma máquina. Ele cria, cuida e se relaciona com o fruto do que fez, que é fruto de si mesmo. É como a mãe que dá à luz um filho, acomoda-o no seio e passa a acompanhá-lo pelo resto da vida.
Os cristãos e as igrejas às vezes parece que vivem fora do espaço e do tempo, dedicando-se a algo “mais sublime” do que a terra e o ser humano. Querem “salvar almas”, como se as pessoas fossem seres abstratos a vagar fora do jardim onde Deus as colocou para viver. Aliás, Deus não só nos colocou nesse jardim mas, ao criar-nos do pó da terra, mostra que somos parte dele: somos feitos da mesma essência que todo o jardim criado. Não há como escapar do pó! É melhor assumir do que somos feitos (3:19) e ouvir a voz de Deus, que nos cria, dá o mandato do cuidado e nos presenteia com o outro, como expresso na criação de uma companheira para o homem. Não há, pois, outro lugar onde possamos viver em plenitude a não ser neste jardim, onde se ouvem os passos de Deus.
Nós temos um jeito especial de ouvir os passos de Deus. É a possibilidade da humanidade que recebeu de Deus o fôlego da vida. Pois, como diz o relato, Deus soprou em nós o fôlego da vida. É esse fôlego que desenha a nossa humanidade; e é como humanos que podemos entender Deus dizendo que há no jardim espaço suficiente para vivermos a vida de forma digna daquele que nos criou. Há no jardim o suficiente para todos e nele somos vocacionados a viver coletivamente. Encontrar o nosso espaço vital no jardim de Deus em nossos dias, cultivar a suficiência doada por Ele e fazê-lo em comunidade é abraçar uma vocação de vida que faz sorrir o próprio Deus.
... encontraram o seu jardim!
Num pequeno grupo de pessoas vindas de várias partes do mundo nós líamos Gênesis 2, celebrando a vida no espaço que Deus nos deu. Falávamos do cuidado com nós mesmos, com o outro e a comunidade. Então Tim e Teresa (nome fictício), ambos nascidos na África do Sul, nos remeteram ao lugar onde estavam vivendo o seu ministério: Bangladesh. Lá, disseram, o espaço para cultivar uma vida assim era bem escasso; e Silêda e eu sabíamos do que estavam falando, pois havíamos testemunhado a avassaladora pobreza naquele país superpopuloso. Mas então eles nos surpreenderam ao dizer: “Bangladesh é o nosso jardim. É o lugar onde Deus nos colocou.” Essa declaração de vocação e de amor pelo lugar onde eles estavam e pelas pessoas com as quais conviviam me emocionou. É isso que Gênesis 2 está nos dizendo: o “jardim” é o lugar da nossa vocação!
A esta altura, fico dizendo a mim mesmo que esse jardim já não está presente entre nós; não desta forma. Aliás, isso diriam até os peixes que respiram com dificuldade nos belos e poluídos lagos da nossa urbanizada Curitiba. Mas como nós tratamos e desfiguramos “os jardins” onde Deus nos colocou hoje, isso fica para o próximo artigo. Aqui, fica o convite a celebrarmos com gratidão aquele jardim no qual Deus nos criou e colocou com um propósito maior. Que o façamos com a alegria da vida, honrando a dignidade do outro e no anseio de ouvir os passos de Deus “na brisa de cada dia”.
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Publicado originalmente na Revista Ultimato, ed. 351
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