Há dois anos estive no Haiti (novembro de 1992). Foi uma viagem doída. Uma espécie de dor muda que dá um nó dentro da gente.
Permitam-me uma palavra de esclarecimento. Eu não tive nenhum problema na viagem. A mala chegou ao destino, eu fui bem tratado pelo pessoal local e não tive problemas de saúde. Estas coisas até que poderiam ser administradas. A origem da minha dor está no confronto com uma realidade que representava uma violência nua e crua a qualquer padrão mínimo do que venha a ser a dignidade humana. O Haiti é um país pobre e oprimido. É uma pobreza avassaladora porque onipresente e uma opressão que parece não envelhecer, apesar dos anos que tem.
Em meio à pobreza, que é tanta e tão profunda, a gente vai fazendo algumas observações. Não apenas a pobreza parece ser onipresente, pondo o seu carimbo em todo lado e canto, mas parece haver gente por todo lado. E, em meio a tanta gente, qualquer quantidade de crianças. O crescimento demográfico no Haiti continua sendo altíssimo. Ademais, o Haiti é um país pequeno com recursos naturais escassos e porções de terra notoriamente limitadas. O que se pode esperar, em termos de produção agrícola, quando, em parte do país e como os meus olhos testemunharam, são cactos que constituem a paisagem?
Hoje, uma vez mais, o Haiti vive um momento de enorme instabilidade político-institucional. O mandato presidencial de Aristide, eleito pelo voto popular numa tenra experiência democrática, foi desrespeitado pelos militares, que o destituíram mediante um golpe. Uma vez mais a esperança de mudanças foi colocada de molho. A opressão se instala, a pobreza aumenta e a desesperança parece tomar conta. Também nesta área são os cactos que parecem constituir a paisagem.
Caminhando entre os cactos
Mas o povo do Haiti tem aprendido a caminhar entre os cactos. Nesta caminhada do povo haitiano há várias agências de ajuda e/ou desenvolvimento, bem como inúmeras igrejas que se têm disposto a acompanhar, de uma ou outra forma a caminhada do povo. Mas eu queria expressar duas preocupações.
Se há tantas agências de ajuda que têm estado no Haiti por tantos anos, qual é o efeito dessa presença no contexto social e econômico do país? Confesso que, em primeira instância, é difícil perceber a presença dos milhares de dólares que essas agências têm investido no país. Mas essa é apenas uma observação superficial, e muitas vidas devem ter sido salvas no Haiti, em função da atuação de agências que têm canalizado para aquele país ajuda de caráter humanitário. Correndo o risco de ser taxado de inexperiente, no entanto, eu arriscaria sugerir que a presença e a verba de agências de ajuda poderiam ser canalizadas de forma mais efetiva e com um caráter mais transformador. Aliás, a meu ver, num contexto como o do Haiti, não é possível que cada agência continue a fazer a sua coisa no seu canto, como se ela fosse única, suficiente e/ou, pudesse, sozinha, fazer uma diferença significativa. Não seria possível e fundamental que essas agências se encontrassem, visando o estabelecimento de uma agenda e estratégia “conversada”de atuação e investimento? Não seria possível que a Comissão das Igrejas para o Desenvolvimento (criada em 1924), ou algo similar, jogasse um papel importante no esforço de integrar as iniciativas de desenvolvimento, visando a transformação da realidade rumo a padrões de justiça e de vida familiar e comunitária que dêem dignidade à vida humana?
O mesmo se poderia e deveria dizer da presença e ministério das igrejas. Também a igreja tem estado neste país por tantos anos sem que a sua presença tenha significado uma mudança social e econômica radicalmente representativa dos valores do Reino de Deus. É claro que não estou dizendo que as igrejas e agências de desenvolvimento têm o mesmo papel a cumprir, mas uma igreja que não produz um impacto de transformação na realidade social do lugar onde ela se instala coloca a mensagem do Reino de Deus sob suspeita e corre o risco de se tornar um agente de status que mantém as coisas como elas estão... e as coisas não estão bem.
O evangelho nem de longe esgotou as possibilidades de impacto e transformação no Haiti... e entre nós, onde quer que estejamos ou donde quer que sejamos. Os cactos podem se transformar em trigo e mandioca, casa e saúde, estrada e hospital, paz e harmonia, em nome de Jesus. Os cactos não precisam dominar a paisagem.
Crescer é bom, mas...
Eu viajava ao norte do Haiti. O asfalto por vezes parecia tomado pelo que no Brasil chamamos de “panelas”. Inúmeras panelas a ameaçar, entre outras coisas, o pneu, o aro e a suspensão do carro.
O Haiti é um desses países onde se vê gente por todos os lados. Gente grande e pequena, mais principalmente pequena. Gente velha e jovem, mas principalmente jovem. E muita...muita gente pobre. Uma pobreza extensa e intensa. É extensa porque ela parece estar em todo lugar, a colocar a sua marca em cada esquina e a entoar a sua triste melodia a cada nota. É intensa porque absoluta. Isto significa fome e desnutrição, abandono e desesperança, doença e morte. Morte fácil, morte prematura, morte barata.
Entre o acelerador, o freio e o som da buzina, a agilidade no volante exigia que se desviasse de mais uma panela no asfalto esburacado e do caminhão que, quebrado, acabou ficando estacionado em plena curva e na própria estrada, por quanto tempo não se sabe. Atento ao panorama que se desenhava diante dos meus olhos e à medida que seguíamos o nosso caminho, eu fui também percebendo que no Haiti existem muitas igrejas evangélicas. Ademais, neste país tem havido uma forte e já histórica presença missionária. Conforme a World Christian Encyclopedia, de David B. Barret, o “Haiti tem o maior número de protestantes no Caribe Latino”. Ainda segundo Barret, “a maioria das denominações experimenta um rápido crescimento, particularmente entre as classes mais baixas”. Embora a presença missionária protestante remonte ao ano de 1807, foi apenas a partir da década de 20, do presente século, que ela se tornou mais representativa, ou seja, com a chegada dos batistas, vindos dos Estados Unidos.
Conversa vai, conversa vem, o meu companheiro de viagem e eu chegamos àquela pergunta que mais dói do que ressoa. Dói por já trazer dentro de si uma espécie de resposta: por que é que o Haiti continua tão pobre se à beira de suas estradas há tantas placas anunciando, sempre novamente, a presença de mais uma igreja evangélica?
Quando esta pergunta se refere à Igreja Católica Romana, a resposta de muitos evangélicos parece ser fácil e rápida: a Igreja esteve e/ou, está atrelada ao poder constituído e opressor e não constitui em agente de mudanças profundas e significativas; o catolicismo é, em grande parte, nominal e sincrético, e não tem, por isso, uma proposta que seja evangelicalmente renovadora; ela não é a igreja da Palavra, uma palavra que transforma a realidade. E o próprio Haiti é um país de tradição católica. Mas será que o impacto da presença evangélica, a nível de transformação da realidade, é diferente? O que se avizinha no horizonte da experiência latino-americana e caribenha é que o crescimento da igreja evangélica não necessariamente traz no seu bojo uma proposta de renovação da sociedade e nem sempre aponta para uma realidade de transformação à luz dos padrões do Reino de Deus. E, de forma irônica, mas também profética, poder-se-ia dizer que:
não temos estado mais atrelados ao poder por ter faltado oportunidade para isto. E onde esta oportunidade nos tem sido dada, nós temos quase sempre nos lançado nos braços do poder de forma irrestrita, ingênua, entregando a virgindade por um prato de lentilhas;
Não somos mais nominais porque muitas de nossas igrejas são novas e/ou, os nossos filhos estão fora da igreja;
Criticamos, com razão o sincretismo inter-religioso que é tão abundante no Haiti e no Brasil, mas temos os nossos próprios “lenços abençoados”, “evangelhos da prosperidade”e processos de absolutização das “batalhas espirituais”.
A pergunta primeira, no entanto, teima em ficar no ar: se 30% da população haitiana é composta de evangélicos, por que essa presença parece não traduzir-se mais significativamente em transformação da realidade?
Conversa vai, conversa vem. Buraco vai, buraco vem. Gente vai e gente vem...e o assunto vai rolando. Será que a velha ética protestante não tem funcionado no Haiti? Como e onde ela se torna visível? Que impacto ela tem produzido? Referíamo-nos a alguns princípios que têm, de uma ou de outra forma, acompanhado a prática missionária evangélica: (a) quem trabalha duro cresce na vida; (b) quem se converte traz o dinheiro para casa e não o deixa no bar ou no prostíbulo; (c) o cristão dá uma ajeitada na sua casa; (d) os filhos do crente são bem cuidados e educados. É claro que minha percepção da igreja no Haiti era absolutamente superficial, mas o meu companheiro haitiano parecia ter as mesmas perguntas e inquietações que eu. Por que a presença evangélica não é mais visível em termos de qualidade de vida e padrões de justiça, se a presença evangélica neste país tem a idade de algumas gerações?
O Papel da Igreja
A pergunta não tinha um tom de julgamento, mas de incógnita. Uma possibilidade de interpretação seria a de que, no Haiti, a empresa missionária não enfatizou a referida ética. Mas isso seria difícil aceitar. Ademais, se poderia conjeturar que a pregação do evangelho se deu, neste país, de forma tão desencarnada que não levou a igreja, que emergiu dessa pregação, a causar um impacto sócio-econômico profundo na sociedade. Mas eu desconfio que esta hipótese também não detenha toda a verdade.
Eu arriscaria dizer que a situação de miséria no Haiti é tão profunda que a ética evangélica da consequência é muito curta. Senão vejamos: (a) o que significa enfatizar o trabalho se o nível de desemprego no Haiti é em torno de 70% e se o acesso à terra fértil é limitado? A economia informal é sempre um recurso; mas se, no final do dia, eu lhe vendi uma manga e você me vendeu um pedaço de cana-de-açúcar, ambos não teremos muito com que sobreviver; b) o que significa enfatizar a educação se o índice de analfabetismo chega a 80% da população e se a rede de escolas públicas é extremamente limitada? O Haiti precisa muito mais do que mudanças individuais, familiares e cosméticas. O Haiti precisa de mudanças e investimentos na sua macro-estrutura, no seu edifício político, no seu tecido sócio-econômico e na sua cultura ética. A pergunta, então, passa a ser: o que a igreja tem para dizer e contribuir nessas áreas? A resposta a esta pergunta precisa achar o seu caminho para dentro da agenda de prioridades das diferentes igrejas.
A viagem era longa. A estrada até que melhorara. O carro podia deslanchar com mais desenvoltura, mas não se podia vacilar porque as fronteiras entre a estrada e o acostamento não eram trabalhadas e sempre há o risco de um cabrito ou um menino aparecer diante do carro. Felizmente, tudo o que atropelamos na viagem foi um galináceo e um cabritinho. Escurece e eu já nem identifico as placas de igrejas que, no entanto, continuam a marcar o nosso trajeto. E estas placas continuam a levantar a pergunta pelo inter-relacionamento entre o crescimento da igreja, assunto tão caro para nós na América Latina de hoje, e a expansão dos valores do Reino de Deus no seio desta sociedade na qual a igreja cresce.
Eu celebro, com tantos outros irmãos e irmãs, o crescimento da igreja evangélica na América Latina e no Caribe. Mas este crescimento tem de ser integral. Ele precisa espelhar os valores do Reino de Deus, os quais, entre outros nomes, se chamam pão e justiça, casa e saúde, libertação e perdão de pecados. Essa é uma área na qual temos muito que aprender. É por isso que eu escrevo, uma vez mais, uma crônica com o título Crescer é bom, mas...
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Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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