Faz muitos anos que eu estive na Tailândia. Foi na época em que minha barba, agora branca, ainda tinha cor. Algumas imagens, no entanto, ainda continuam na minha mente. Bangcoc, afinal, é mais uma dessas grandes e contraditórias cidades modernas. O trânsito é caótico e as calçadas estão ocupadas de gente que caminha para todo lado. Os pobres vagueiam a pedir e as crianças, com seus rostos pálidos, indicam que não têm para onde ir. As vitrines e as luzes estão sempre a insistir por uma atenção sem resistência, seja um hamburguer no McDonald's ou uma noite numa casa de programa.
Mas eu nem conheço Bangcoc tão de perto. Afinal de contas, estive na Tailândia para um evento cristão de caráter internacional e de razoáveis proporções. Ficamos num sofisticado hotel, numa pequena cidade cuja vida depende do hotel e é determinada pelo comportamento, valores e exigências do turismo internacional, especialmente japonês.
Mas, sendo que este número da revista Ultimato traz a Tailândia ao nosso coração e atenção, eu achei que poderia trazer à memória reminiscências daquela viagem e conversar sobre alguns assuntos que envolvem a Tailândia mas afetam a todos nós, como família da fé, preocupada com a missão da igreja, os valores éticos da vida cristã e um padrão de vida que seja indicador da dignidade com a qual Deus marcou a toda a sua criação.
A Tailândia respira religião
O congresso no qual eu participava era longo. E, numa folga no programa, um grupo de brasileiros deu uma fugida para Bangcoc. Afinal, não era possível que a gente, estando na Tailândia, não desse um giro pela capital. O nosso itinerário turístico, no entanto, foi fundamentalmente religioso. Ou seja, de templo em templo, passeamos por Bangcoc.
A Tailândia, como sabemos, é um país predominantemente budista. Do rei ao pobre colhedor de arroz nos rincões do país, a cultura budista permeia o país. E os templos budistas, de variados tamanhos e esplendor, se espalham por todo lugar. No final do passeio, eu lembro, estávamos cansados de ver tanta estátua de Buda, fosse ela pequena, grande ou média.
Eu não sou um especialista em budismo. Aliás, nem é sobre isto que eu queria falar. Mas eu queria me referir, sim, ao pluralismo religioso. O mundo no qual nós vivemos é cada vez mais um mundo plural no que se refere ao quadro religioso. Como brasileiros, nós não temos muita experiência com este assunto. Primeiro, porque vivemos ou achamos que vivemos cercados por uma cultura que tem um cheiro de cristianismo. Cruzes e torres de igrejas nos cercam por todo lado e o nome de Deus é pronunciado com demasiada abundância. Segundo, porque não levamos a sério o pluralismo religioso que marca a nossa própria história e realidade. Afinal, o cristianismo que chegou ao Brasil veio acompanhado da espada e ofuscou qualquer outra expressão religiosa que não fosse a sua. Daí que outras expressões religiosas se refugiaram, para usar a linguagem de Gilberto Freyre, na "Senzala", enquanto na "Casa Grande" se praticava a religião oficial. Mas, escondida, a religião da "Senzala" se desenvolveu e se firmou. E nós, como Brasil, somos um país muito mais plural em termos religiosos do que imaginamos.
O fato é que o mundo contemporâneo é um mundo crescentemente plural e religioso, seja no Brasil ou na Tailândia. Por uma época pensou-se que as cidades modernas seriam seculares. Espaços construídos pela civilização humana onde não haveria nem lugar nem necessidade para os deuses e seus templos. Ledo engano. As cidades modernas são crescentemente religiosas. Aliás, este final de século está a testemunhar um redespertar religioso que tem revigorado expressões religiosas que ainda ontem não pareciam ter muito futuro.
Mas por que, afinal, estou falando deste assunto nesta crônica? Eu o faço por quatro razões básicas. Primeiro, porque nós precisamos evitar o ufanismo de pensar que a fé cristã é a única em expansão no mundo moderno e que o nosso esforço evangelístico, no tempo apropriado, converterá todo mundo a Cristo. Segundo, porque nós precisamos aprender a discernir o pluralismo religioso em meio ao qual nós mesmos vivemos. Terceiro, porque precisamos aprender a pensar a fé em perspectiva missionária num contexto religioso plural. E, quarto, porque eu não creio que o macro-ecumenismo seja uma opção cristã viável.
Macroecumenismo
No mundo ecumênico começa-se a falar em macroecumenismo, onde e quando as relações inter-religiosas passam a ter um lugar preferencial. É dentro deste universo de relações e preocupações, pois, que representantes dos cultos afro-brasileiros têm participado de alguns eventos cristãos. É também dentro deste universo que se procura identificar a negritude com a religião africana nativa. Como evangélico que sou, o meu diagnóstico me diz que este é o caminho da morte do movimento ecumênico. Pois, enquanto a fé cristã afirma o respeito mútuo nas relações humanas, incluindo as religiosas, e crê na necessidade de que haja um espaço com liberdade para a prática religiosa, a fé cristã não se entende e não aceita ser simplesmente mais uma expressão religiosa num variado universo de opções religiosas possíveis.
A fé cristã é uma fé missionária porque crê no Senhorio absoluto e suficiente de Jesus Cristo. E isto é inegociável. Mas esta mesma fé no Cristo precisa ser compartilhada e recebida como sendo uma boa nova e não como sendo uma "camisa de força". No outro lado do macroecumenismo, pois, corre-se o risco de ver instalada uma mentalidade evangélica que está mais próxima de um espírito de "cruzada" do que de um espírito de amor que, a partir da compaixão de Jesus, tem sede de ver o evangelho de Cristo sendo abraçado e vivido.
Nos últimos anos nós temos celebrado o crescimento da igreja evangélica, tanto no Brasil como em muitos outros lugares no mundo. Também temos visto uma igreja como a brasileira dar os seus primeiros passos no exercício da sua responsabilidade missionária. O crescimento, no entanto, pode nos tornar arrogantes e prepotentes. Afinal, quem é grande e forte geralmente não tem fama de ser humilde e amoroso. Mas a fé se vive assim e missão se faz assim.
Aprender a viver num universo plural, em nome de Cristo, requer convicção firme e amor profundo, uma fé inabalável e uma disposição plena para ouvir, uma autoridade espiritual madura e uma disposição ampla para abrir mão da nossa própria cultura religiosa. E tudo isso é obra de Deus em nós.
A igreja de Cristo na Tailândia é pequena. E, por isso, a responsabilidade missionária da igreja universal é grande para com esse país. E a minha oração é que Deus levante missionários que tenham o desejo de amar esse país, assumir a sua cultura e discernir espiritualmente as "brechas de Deus" para o testemunho de um evangelho que representa vida nova para um lugar que vive sob um império religioso que não tem a marca da liberdade e da vida, mas da dependência e da opressão.
A igreja de Cristo entre nós é muito maior. Cabe a nós, portanto, participar do exercício missionário que leva os chamados ao redor do mundo. A nossa oração pode ser na direção de que Deus levante pessoas entre nós que tenham a disposição de ser missionários na Tailândia. Mas cabe-nos também discernir o nosso próprio contexto e identificar as expressões religiosas que têm trazido dependência e opressão ao nosso povo. E, não por último, cabe-nos sondar a nossa vida individual, eclesial e teológica para averiguar se não estamos transformando a fé cristã num gueto cultural onde não há espaço para o outro cultural, racial, étnico e até social. Eu arriscaria afirmar, por exemplo, que a igreja evangélica não tem sabido integrar o negro e a negritude na sua vivência eclesial e expressão teológica. Não temos também sabido estabelecer como nossa cultura um diálogo que vá além da negação. Mas este são desafios que ficam para outro dia. Eu gostaria que eles não fossem esquecidos, pois suspeito que vamos precisar trazê-los de volta à nossa memória e coração. Porque eles são importantes para a nossa caminhada de fé nestes tempos. Até breve!
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Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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