“Homem e mulher os criou” (Gn 1:2&)
Sofia é a nossa última neta, que está completando três meses de idade. À medida que os seus traços fisionômicos vão se delineando as interpretações se intensificam. Uma das últimas discussões foi em torno dos seus olhos, que seriam “os olhos do Vovô Di”, como chamam os outros netos. Mas, se os olhos são da cor dos meus (que até hoje não sei se são verdes azulados ou azul-esverdeados), já o seu desenho amendoado lembra os de outra avó. E assim a pequena Sofia, com essas múltiplas interpretações, torna-se um mosaico composto de infindáveis peças familiares. Mas logo, logo iremos nos deparar com uma menina que irá nos dizer “Eu sou eu” e a família vai celebrar a afirmação da sua identidade.
Na verdade, a Sofia é um presente e um mistério. Ela carrega marcas dos diferentes tecidos familiares que a geraram mas ao mesmo tempo é unicamente ela, desde sempre e para sempre. Ela é a Sofia e ponto. A nossa oração, no entanto, é que ela vá descobrindo que é muito mais do que “um composto de peças herdadas” ou “uma nova identidade ambulante”. É fundamental que ela descubra que é fruto do coração de Deus. E que, como diz o salmista, enquanto ela era tecida no ventre de sua mãe e antes mesmo que qualquer ultrassom a pudesse detectar, Deus já a conhecia e a amava, pois ele mesmo a estava formando.
O salmista, ao discorrer sobre a sua própria vida e perceber-se envolto por Deus de maneira intensa, amorosa e cuidadosa, não tem outra resposta senão exclamar em louvor e adoração:
Como são preciosos para mim os teus pensamentos, ó Deus!
Como é grande a soma deles!
Se eu os contasse, seriam mais do que os grãos de areia.
Se terminasse de contá-los, eu ainda estaria contigo.
(Salmo 139:17-18)
Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem”
Ao dançarmos por entre os meandros da criação de Deus, conforme o relato de Gênesis que vem norteando estas reflexões, nos encontramos uma vez mais com a palavra-presença de Deus. E, novamente, vemos Deus criar pela sua palavra e em resposta a ela a criação vai se desenhando. Mas, desta vez, o desenho que surge é diferente. Por um lado, é uma criatura como todas as outras a povoar e colorir esse mundo criado por Deus. Mas, por outro lado, é uma criatura única, pois reflete a imagem de Deus. E, além do mais, ela é parceria: “homem e mulher os criou”.
Muitas ideias e interpretações povoam bibliotecas no esforço de explicar em que consiste essa imagem de Deus presente no ser humano; e eu, certamente, não quero me aventurar a dizer algo novo ou diferente. Mas umas poucas coisas quero ressaltar. A primeira delas é que, logo após serem criados, homem e mulher são chamados por Deus para se multiplicarem e exercerem domínio sobre os outros seres criados (Gn 1:26-28). A segunda é que, no relato da criação descrito em Gênesis 2, vê-se Deus formando o homem do pó da terra e soprando nele o “fôlego da vida” (Gn 2:7). Como diz Eugene Peterson, o homem-pó torna-se ser humano pelo sopro de Deus. Assim, o ser humano carrega em si o sopro de Deus, o que se constitui no próprio segredo da vida. A terceira vem do livro de Eclesiastes, onde o autor diz que Deus “pôs no coração do homem o anseio pela eternidade” (Ec 3:11). Ou, como bem expressou Agostinho de Hipona, um dos pais da igreja: “Tu nos fizeste para ti mesmo e o nosso coração está inquieto até que ele repouse em ti.” Assim, ao instilar no ser humano o seu próprio sopro de vida, Deus marca a sua criatura finita com o anseio pela eternidade.
Encontramos, também, a parceria humana sendo chamada por Deus para exercer autoridade na criação que Deus põe à sua disposição. Uma autoridade modelada pela autoridade que o próprio Deus exerce em relação a toda a criação, inclusive a do ser humano. E, não por último, Deus chama o casal humano para que se multiplique e assim experimente, como comunidade humana, o dom da geração da vida. Um dom que Deus vive com tanta perfeição, beleza e intensidade, do que toda a criação é testemunha
Mas por mais que nos esforcemos para entender por que estamos aqui e em que medida fomos criados à semelhança de Deus, nunca o saberemos com total clareza. E, é bom que seja assim e assim permaneça. Este é um mistério que, como mistério, deve permanecer. É um mistério que nos quer levar a celebração da vida como um dom e a adoração daquele que nos criou. A Deus mesmo!
Assim, o que eu queria dizer para a Sofia são exatamente estas três coisas:
Viva a vida como mistério! Viva-a como um presente de Deus para você mesma e para todos ao seu redor.
Celebre a vida! Ela vem de Deus e Deus lhe dá sentido. Muitas coisas acontecem e podem acontecer em nossa vida, mas nada pode tirar de nós a dignidade que o próprio Deus nos concedeu: a dignidade de sermos vocacionados para a humanidade.
Adore Aquele que a criou! Você, Sofia, é muito mais do que feições herdadas ou identidade assumida. O seu potencial maior, você o encontrará no ato de adorar Aquele que sorriu a sua existência desde a eternidade.
É... na verdade não creio que esteja falando apenas da Sofia. Estou falando também de você.
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Publicado originalmente na Revista Ultimato, ed. 348
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