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Foto do escritorValdir Steuernagel

A Caneta tinteiro entre os dedos

Curitiba, 22 de março de 2001


Deus amado,


Hoje eu queria te mandar uma carta. Eu preferia até que ela fosse escrita à mão, com uma dessas antigas e nobres canetas-tinteiro. Assim ela me pareceria mais pessoal. Coisa do coração. Mas eu sei que essas são manias minhas que não resistem aos processos mais rápidos e até mais legíveis. Aliás, eu reconheço que não é tão simples ler uma carta escrita à mão por mim. Mas é que, quando quero dizer algo pessoal e do coração, prefiro e gosto de escrever assim: com uma caneta-tinteiro entre os dedos.


Sei também que pode parecer meio estranho te escrever uma carta através da revista Ultimato. Esta seção de cartas, afinal, não existe. É que eu sou assim, desse jeito. Volta e meia digo coisas privadas de forma pública. No meio de uma palestra, de repente eu me lembro e faço referência a coisas caseiras. Não sinto, pois, que através desta carta eu esteja invadindo a tua privacidade ou dizendo coisas que não devam ser públicas.


É que eu queria te dizer algumas coisas que considero muito importantes. Coisas simultaneamente básicas e fundamentais. Coisas da alma e do coração. Coisas extremamente significativas, mas não privadas. Coisas para serem ditas em espaço aberto.


Mesmo que as coisas sistemáticas não caibam muito bem numa carta do coração, eu vou acabar falando por itens. Mas, como isso me ajuda na comunicação, eu sei que tu não te incomodas com esse meu jeito de falar.


Uma declaração de amor!

Eu queria dizer, Deus, que eu te amo. Não que isso seja algo novo para ti, pois o amor é da tua natureza e só tu consegues viver e expressar o amor na sua inteireza. Eu até sei que tu declaraste o teu amor por mim em muitas e muitas ocasiões e por muito... muito tempo. Me amaste ainda no ventre da minha mãe e é muito bom me sentir amado por ti.


Mas eu também queria dizer, mesmo que de forma balbuciante, que te amo. E que esta minha percepção de amor-resposta, por ti, enche o meu coração de paz.


Eu sei que não consigo formular essa declaração de amor com muito desencabulamento. É que sou uma dessas pessoas que carregam consigo mais rigidez do que graça, mais produção do que abraço, mais agenda do que cativamento. Sou um desses atrapalhados nas coisas do amor. Mas a verdade é que eu tenho aprendido muitíssimo acerca do que é e de como se vive o amor. E tu me ensinaste muito através da Silêda, esta mulher que me deste e que tantas vezes me diz que me ama.


Mas hoje, através desta carta que eu rascunho com uma caneta entre os dedos, eu queria dizer que te amo. Amo com o amor que me deste e que enche o meu coração com o tempero e o sabor da vida.


Reconhecimento de fidelidade

A palavra graça aparece com frequência no arcabouço teológico da minha igreja e da minha formação. E isso é muito bom. Mas eu carrego comigo essa sensação de que nunca vou entender, nem o que realmente seja graça, nem a profundidade com a qual tu a vives e a transmites. Mas isso também é bom. Tanto porque isso me coloca nas tuas mãos, bem como continua me cativando para crescer na

avra que chega e sabe como chegar ao centro da vida da gente, seja para desafiar, seja para confortar.


A tua palavra orienta e reorienta. Estabelece rumos e prioridades. Aponta para desvios e necessárias correções. A tua palavra conforta e dá forças para continuar lutando no combate da fé. E este não é um conforto barato. Ele é substancial. Vital. É carregado de direção e eternidade. Pois, afinal, ele vem de ti.


E, não por último, a tua palavra orienta para o outro; aponta-me a necessidade do outro e desafia-me a viver para o outro a partir do corpo de Cristo.


Eu quero te agradecer, através desta carta, o fato de não teres silenciado para comigo. Pela tua insistência em falar comigo. Eu sei que às vezes eu demoro a querer te ouvir e a te entender. Mas tu sabes que a minha vida depende dessa tua palavra.


Enriquecido pela família

Às vezes é desafiador viver em família, como eu experimento na minha própria casa. Mas é muito bom e é necessário. É insubstituível. Nenhuma solidão do mundo substitui a realidade da vida familiar. Aquela coisa cotidiana que vai do amanhecer à madrugada. Do sovaco ao chulé. Do feijão com arroz à louça por lavar. Da festa de aniversário ao choro da despedida. Da celebração da vitória ao gemido da dor. A família é insubstituível, apesar da tendência individualista que marca os nossos dias. E tu ainda enriqueceste a minha vida com a família da fé. Aliás, me disseste que não há relação contigo que seja possível sem a relação com o outro. Assim, a fé cristã é comunitária.


Para nos ajudar a entender o que queres com e para o teu povo, voltaste os nossos olhos para a convivência entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A harmonia, a complementaridade e o ministério de cada um deles é o convite e o desafio para a nossa vivência comunitária. Por mais difícil que isso seja, pois, é assim que nós temos precisado entender o desafio de ser igreja B uma igreja que se inspira e espelha na própria Trindade. E isso faz a gente tremer pela responsabilidade e diante da oportunidade.


Tu sabes que nem sempre eu sou um bom Amembro@ dessa tua comunidade. Mas eu queria agradecer a forma como tens enriquecido e desafiado a minha vida através dela. A geografia da minha vida tem sido marcada por uma família de Deus espalhada pelo mundo, mas que nunca pode deixar de se tornar local. Também os valores da minha vida têm sido e precisam ser forjados e desafiados por essa comunidade. Na minha vida cotidiana, portanto, tu esperas que eu seja um aprendiz e um mensageiro da vivência comunitária. E assim se experimenta e anuncia o sabor do teu reino.


À sombra da cruz

Como tu deves ter muitas outras cartas para ler, eu sei que devo achar um jeito de dar descanso para a caneta. Mas antes de concluir eu queria dizer só mais uma coisa. Eu queria agradecer, de uma forma particular, por Jesus. Esse Deus-homem que nos permitiu conhecer a ti e nos abre o caminho para ti. Esse homem-Deus que não fugiu da sua humanidade nem se desviou da cruz. E lá, daquela cruz, ele me chama para si e me aponta o caminho da salvação. É lá naquela cruz, afinal, que eu sou levado a entender um pouco do que seja a tua graça. Graça maravilhosa, como se tem cantado tantas e tantas vezes. É la naquela cruz, também, que eu encontro o outro e juntos somos convidados e desafiados a ser comunidade de fé.


Há muitas pessoas e grupos que apontam para muitos caminhos. Este número da revista Ultimato retrata um desses grupos. Mas só há um grupo B Aos do Caminho@ B que, convocado a estar aos pés dessa cruz, é lá que recebe o dom da vida, é desafiado a viver em comunidade e enviado a servir no mundo em nome de Jesus. Obrigado por essa cruz, convite de vida para uma humanidade atordoada. Um convite que não perde a sua atualidade.

Obrigado pelo privilégio de escrever e pela tua carinhosa atenção.


Até breve!


Valdir R. Steuernagel


PS: Eu acabei me dirigindo a ti na segunda pessoa do singular. Isso, como tu sabes, não é falta de respeito. É expressão de reverente intimidade.

 

Publicado originalmente na Revista Ultimato.

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