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Foto do escritorValdir Steuernagel

Era só uma maça... E um homem de Deus

Necessitamos urgentemente de líderes com um claro

compromisso ético, que se ergam como modelos

e desafiem muitos outros a descobrir as percepções

e os valores morais que os levarão a servir muito

melhor a partir daquilo que eles têm e com aquilo

que eles sabem. Robert K. Greenleaf




Uma elegia à fidelidade e à simplicidade

Faz anos. Muitos anos. A imagem, no entanto, resistiu ao tempo. Chegava-se, na época, ao final dos anos 60. Anos convulsionados. Extremamente complicados. Anos de ditadura que, no entanto, passavam ao largo da máquina registradora da minha história, na então pacata e bonita Joinville, a "Cidade das Flores" do norte catarinense. O meu mundo girava em torno ao trabalho diurno, ao estudo noturno e ao grupo de jovens no final de semana. Tudo muito simples... e bonito.


À noite eu estudava, ou fazia de conta, num relativamente frágil curso de contabilidade. Durante o dia trabalhava no escritório de uma pequena loja. Lá, fazia um pouco de tudo: do controle das duplicatas ao eventual atendimento na loja, da correspondência às cobranças externas, pedalando uma velha bibicleta.


A loja estava inacabada. Sempre faltava dinheiro para a sua conclusão. O meu local de trabalho dava para a rua. A intermediação (e respectiva proteção) do escritória para a rua era feita por uma dessas portas gradeadas que não oferecem resistência nem ao vento frio ou refrescante e nem ao olhar curioso ou à saudação amiga de alguém que, passando pela calçada, não resistia a um coloquial "fazendo de conta, hein?"


Pois naquele dia, ao levantar os olhos, me deparei com um homem que trazia à mão um pequeno volume no qual descansava uma maçã. Ou seriam duas? Eu já nem me lembro. Mas isso não faz diferença. O fato é que, por entre as grades, num gesto rápido e destituído de muitas palavras, a maçã mudou de mãos. Maçã que, no meu contexto e na minha época, se ganhava de presente no Natal ou se levava ao enfermo em visita de hospital. Maçã envolta num macio e fino papel azulado, a indicar a sua nobre origem argentina. Maçã especial!


E quem der a beber ainda que seja um copo de água fria, a um destes pequeninos, por ser este meu discípulo, em verdade vos digo que de modo algum perderá o seu galardão. Mateus 10.42

Eu, na minha juventude, quase fiquei encabulado. Um encabulamento surpreendido e agradecido. Aquele fora um gesto simples de alto valor simbólico. A tal ponto que, quase trinta anos depois, eu estou a recontar a história, envolto em silenciosa alegria. O encabulamento se foi e a gratidão adorna o evento. O que a memória me diz é que quem me trouxe uma maçã, naquele dia, foi um homem de Deus.


A história toda tem, é claro, mais contornos. A personagem da maçã não me era desconhecida. Pelo contrário, aquele homem me havia ajudado a chegar a um relacionamento pessoal e vivo com Deus. É com ele que eu estava conversando acerca dos caminhos futuros da minha vida e vocação. (Aliás, naqueles dias eu havia compartilhado com ele acerca de uma intenção de namoro.) Para mim ele era um homem de estatura. Firme, claro, profundo, acessível, humilde e profundamente amável.


Mas então eu fiquei sem encontrar com o homem da maçã por muitos anos. Por mais de uma década. Os nossos caminhos se separaram. Ele, tendo sido missionário no Brasil, havia há muito voltado à sua terra natal. Eu segui o caminho da minha vocação, indo para lá e para cá. A vida no pequeno e "transparente" escritório ficou para trás, faz muitas luas e muitos verões. Quando, afinal, surge a oportunidade de reencontrá-lo, o que me vem à memória é o episódio da maçã. No silêncio do trem que, num frio dia de inverno alemão, me leva ao seu encontro, eu sorrio e agradeço.


O nosso encontro é breve. Eu já preciso seguir caminho. A nossa comunicação nem é tão fácil. Afinal, o português dele enferrujou e o meu alemão também. Ele fala alemão e eu falo um inglês respingado de algumas palavras em alemão. Uma ou outra palavra em português pipoca aqui e ali. Mas há comunicação e tempo suficiente para o abraço, a oração conjunta, a refeição coloquial e algumas histórias-memórias. Eu tento trazer à memória dele o episódio da maçã. Mas ele não se lembra. Por um momento eu penso: "Mas como é possível que ele não se lembra disso?" O que acontece é que aquele gesto lhe deve ter sido normal. Natural. Ademais, ele deve ter passado muitas maçãs a outras mãos por entre portas, portões e gradeados.


Tu, pois, filho meu fortifica-te na graça que está em Cristo Jesus. E o que de minha parte ouviste, através de muitas testemunhas, isso mesmo transmite a homens fiéis e também idôneos para instruir a outros. 2 Timóteo 2.1-2

O importante dessa história é que eu dela me lembre e tenha consciência de que com a maçã que me caiu nas mãos eu estava sendo discípulado. O que ainda continua a me inspirar no episódio é esse "incompreensível" fato de ver um homem de amplo conhecimento e sólida formação, como ele o era, se preocupar com um guri de escritório que não sabia o que fazer com uma menina pela qual ele estava encantado e que procurava encontrar os caminhos de Deus para a sua vida.


Eu chego ao final desta história e o homem da maçã até parece não ter nome. Decido, então, que é assim que a história deve acabar. Ele preferiria, eu deduzo, ser conhecido como o homem da maçã que sabe estar a serviço de Deus junto a um menino de escritório. Eu, que rabisco estas linhas ainda na sala de espera do aeroporto, mas já tendo me despedido dele, em silêncio oro a Deus para que ele me permita ser assim: um homem de Deus que sabe passar uma maçã às mãos de alguém.


Pastoreai o rebanho de Deus que há entre vós, não por constrangidos, mas espontaneamente, como Deus quer; nem por sórdida ganância, mas de boa vontade; nem como dominadores dos que vos foram confiados, antes tornando-vos modelos do rebanho. 1 Pedro 5.2-3
 

Publicado originalmente na Revista Ultimato.

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