É tempo de festa ou de lamento?
Os 500 anos chegaram!
As coisas aconteceram bastante longe daqui, mas eu me lembro do dia e da cena. Num grande salão de conferência, nós nos preparávamos para uma espécie de assembléia. Mas como estávamos sem energia elétrica a comunicação não seria fácil. Subi, então, numa cadeira e tentei conduzir a assembléia no grito.
Mas se o ambiente se complicava um pouco pela falta de energia, a razão da nossa reunião era simultaneamente bonita e complicada. Algo muito significativo a acontecer numa espécie de encruzilhada da nossa história.
Estávamos em Quito, no Equador, e corria o ano de 1992, quando os povos latino-americanos de fala espanhola eram lembrados dos seus quinhentos anos de conquista por parte dos colonizadores espanhóis. Estávamos, ainda, em meio ao 3º Congresso Latino-Americano de Evangelização, que se realizava exatamente em 1992, para que a conquista fosse propositalmente lembrada. Naquele dia o Congresso estudava o tema da conquista-cultura. Quem nos havia ministrado, com espírito de poder e confissão, fora o indígena quechua Fernando Quicaña. Muitos de nós, num misto de estupefação e culpa, o escutávamos chorando. A conquista, afinal, havia sido violenta. Os povos indígenas oprimidos. A própria fé cristã havia chegado pela mão dos colonizadores de forma opressora. Aliás, Fernando compartilhava de como a fé cristã, também em sua versão protestante, havia chegado de forma arrogante e com características opressoras ao seu próprio povo e comunidade. E muitos de nós chorávamos, nos perguntando o que fazer.
Como seria possível falar do perdão de forma respeitosa e significativa? E como isso poderia se dar ali mesmo, no próprio Congresso, que em cenário latino-americano, expressava a diversidade e conflitividade deste continente? Afinal, indígenas e mestiços faziam parte do próprio evento. E pra isso que nós queríamos ensaiar naquela assembléia, na qual faltava energia elétrica e que seria conduzida no grito.
Agora os nossos 500 anos chegaram. E como brasileiros somos convidados a olhar para a nossa história. Este é um ano significativo, no qual o Brasil pode olhar no espelho da sua caminhada histórica e perguntar pela sua identidade. É o tempo da nossa assembléia.
É tempo de festa ou de luto?
Quais são as lentes que usamos?
No calendário de viagens do Presidente do nosso país consta uma viagem a Portugal para a comemoração dos 500 anos. Esta é uma viagem para a terra dos conquistadores, com o objetivo de participar da festa deles. Eles certamente vão querer fazer festa. E nós?
Alguns sinais de festa também podem se observar aqui, entre nós. Um show comemorativo que se programa aqui e acolá, alguma rede de televisão que tenta capitalizar os 500 anos de descoberta do Brasil. Até um ou outro comercial tenta transformar o evento em marketing. Mas o que temos de fato a comemorar? Com que espírito o fazemos? Como olhamos a nossa história?
É claro que festas são importantes e nós até precisamos delas. Mas os seus motivos deveriam estar claros. E as festas de uns não são necessariamente as festas de outros. O que pode, então, ser descobrimento para uns pode ser conquista para outros.
A forma, pois, como olhamos para um evento é importante e até determinante. E como cristãos a nossa visão e interpretação de um determinado evento deve ser determinada pela própria fé cristã. Ela informa, transforma e enfoca a trajetória da nossa vida e os acontecimentos históricos ao nosso redor. Ou seja, nós olhamos para as coisas como cristãos.
Como exemplo, poderíamos lembrar a escravidão. Muitas pessoas e sociedades, numa determinada época a consideraram normal. Alguns cristãos não só tinham escravos, como defendiam a escravidão com textos e argumentos bíblicos. Um absurdo, diríamos hoje. Uma justificação impossível, afirmaríamos com firmeza.
Com o passar do tempo, a avaliação de uma determinada prática e a própria releitura bíblica que se faz pode e até deve nos levar à conclusão de que uma determinada prática é não somente errada, mas também um profundo desrespeito ao outro e uma abominação a Deus.
Podemos até compreender a prática histórica da escravidão num determinado período da história. Mas isso não a legitima e a sua condenação hoje significa que ela não era certa ontem e não deve ser praticada hoje.
Somos, pois, filhos do nosso tempo histórico, mas isso não significa a legitimação de tudo o que se faz num momento histórico.
Ademais, há pessoas e instituições que buscam as lentes que lhes convêm. É o dono do escravo que justifica a covarde escravidão para continuar com os escravos e consegue dormir à noite.
E foi assim com a conquista do Brasil. Portugal, afinal, não chegou a este pedaço de terra com o objetivo de trazer coisas boas aos nativos. O seu objetivo, como a história nos ensina, era a extração de riquezas, não importando o que isso custasse. E custou a dizimação de milhões de índios; suas vidas, tribos e cultura. Os 3.000.000 de indígenas da época foram reduzidos aos 300.000 que existem hoje. Isso pode ser comemorado?
Mas como é possível olhar a história e não ficar deprimido nem meramente indignado? Pois isso acaba não gerando novas possibilidades de reconstrução e convivência. E, em outros termos e contextos, coisas muito similares acabam se repetindo em cada época e tempo.
A própria vivência e articulação da fé cristã não tem escapado da contaminação e da culpa histórica. Tantas vezes a igreja tem encaminhado e participado de práticas históricas que causam vergonha a outros grupos e gerações.
Mas a fé cristã também encontra, dentro de si, uma constante força de conversão e renovação. O exercício da leitura bíblica é o agente maior nessa convocação e nesse convite para o arrependimento e uma nova prática.
A fé cristã nos possibilita assim encarar a história, viver o presente e caminhar para o futuro. Eu gostaria de apontar para três dimensões que são fundamentais na nossa formação para a vida e nos ajudam a olhar o presente momento.
Tudo pertence a Deus
A afirmação da criação de todas as coisas por parte de Deus é um dos nossas dogmas centrais. o Salmo 89.11 diz:
“Teus são os céus, tua a terra; o mundo e a sua plenitude, tu os formaste”.
O desafio é transformar essa confissão em prática histórica e vivência cotidiana, olhando o mundo e os seus habitantes como tendo sido criados por e pertencentes a Deus. É importante, pois, tirar as consequências da nossa confissão de fé. E ensaiando fazê-lo poderíamos dizer que: (1) tudo que está ao nosso redor nos foi dado por Deus; (2) se Deus é o criador do céu e da terra deve haver nela espaço para todos; (3) o espaço e o pedaço do outro deve ser reconhecido e dignificado.
O outro importa
Deus não é indiferente para com a sua própria criação. Ele não a cria e abandona. Ele a acompanha. Importa-se com ela: seja a forma como ela está sendo tratada ou a forma como as pessoas criadas estão se relacionando entre si. Ele não apenas se importa com a sua criação, mas também se importa com a forma como os seres criados se relacionam entre si.
É preciso ressaltar que Deus cria todas as pessoas iguais e não as diferencia com base na cor, na língua, na aparência e no gênero. Os portugueses e os índios são iguais, mesmo que na época tenha se alimentado a pergunta sobre se os índios teriam alma. Deus tem diante de si cada ser humano, e não se conforma nem aceita a morte vil e desnecessária de ninguém. Nem do índio nem do negro. E como resposta a cada uma dessas mortes Deus pergunta: “Onde está o teu irmão?” A forma como se trata o outro importa a Deus.
É possível recomeçar
Mas a fé cristã não é fatalista, onde se aceita a história com resignação e a situação atual com fatalismo. Ela nos desafia a olhar a história com os olhos da possibilidade. O presente, pois, pode ser reconstruído com esperança. Ela nos ensina a não fugir da realidade, mas também a não dar a ela a última palavra.
São abundantes os exemplos bíblicos onde se deixa ver que recomeçar é possível. Por vezes a retribuição é possível e necessária, como no caso de Zaqueu, que diz:
“Senhor, resolvo dar aos pobres a metade dos meus bens; e, se nalguma coisa tenho defraudado alguém, restituo quatro vezes mais” (Lc 19.8).
Noutras vezes se evidencia quando o próprio inimigo pode se tornar um irmão de caminhada e divulgador maior da causa do próprio evangelho. No caso de Paulo, o relutante Ananias ouve as seguintes palavras do Senhor:
“Vai, porque este é para mim um instrumento escolhido para levar o meu nome perante os gentios e reis, bem como perante os filhos de Israel” (At. 9.15).
A fé nos leva a reconhecer a nossa própria limitação, a levar em conta o outro e a viver a possibilidade do recomeço.
Quando procuramos aplicar esses critérios para a nossa vivência pessoal e coletiva, tanto no passado como no presente percebemos o quanto carecemos da confissão e da possibilidade do recomeço. Só assim é possível caminhar para o futuro.
É claro que nós queremos registrar o aniversário dos 500 anos do Brasil, na sua versão da colonização portuguesa. Afinal, não é todo ano que se completam 500 anos. Mas não queremos fazê-lo na perspectiva do encobrimento da realidade histórica. Precisamos fazê-lo conscientes do pecado que se cometeu no processo da colonização e carentes da graça de Deus, rumo à construção da sociedade para nós e nossos filhos.
De fato, o que precisamos é da graça de Deus. Que ela se expresse sobre nós como sobre Nínive. Todos conhecemos essa história dramática da vocação de Jonas para a evangelização de Nínive. E, surpresos, vemos Nínive se convertendo e Deus se alegrando com essa conversão. As palavras pronunciadas por Deus no livro de Jonas se transformam, pois, na nossa esperança.
Ao comemorarmos 500 anos, oramos que Deus pronuncie sobre nós as palavras que pronuncia no livro de Jonas:
“E não hei de eu ter compaixão da grande cidade de Nínive em que há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem discernir entre a mão direita e a mão esquerda, e também muitos animais?” (Jonas 4.11)
CONVERTAMO-NOS, POIS!
Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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