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Foto do escritorValdir Steuernagel

A Missão é de Deus!

E requer toda a nossa vida.


Procurando um gancho!

Eu não sou uma dessas pessoas que gosta de deixar as coisas para a última hora. Aliás, se eu tenho um defeito é sofrer os assuntos com demasiada antecedência. Mas ainda assim não tem jeito e algumas coisas acabam não escapando desta “última hora”. O artigo para a revista Ultimato está entre elas. Quem sabe seja porque escrever nunca é fácil para mim. É sempre uma pequena agonia.


E este artigo nasce também assim. Marcado pela busca de uma relação significativa com esta família de leitores. Quando, no final do ano passado eu escrevi um pouco sobre Ana e Samuel, em diálogo conosco, como igreja hoje e aqui, eu sabia que ainda tinha mais comida no prato. Que o texto bíblico convidava a continuar conversando. E é isso que queria com o artigo de hoje. Peço desculpas por algumas dessas minhas reflexões virem tão demoradamente. Mas a Silêda, de quem sou esposo, diria que eu sou assim mesmo: começo a dizer uma coisa aqui e vou continuar lá adiante.


Samuel tinha mãe!

Samuel, como sabemos, desempenhou um papel muito importante na história do povo de Israel. A sua liderança, num momento histórico de muita importância para o povo de Israel, foi inegável. Ele viveu num tempo no qual o povo ainda tinha memória da experiência com Deus no deserto, mas tinha uma necessidade premente de olhar para frente e se organizar como um povo histórico viável. E neste período de transição Samuel exerceu a sua missão de juiz-profeta. Um verdadeiro estadista da fé.


Mas Samuel não surgiu do nada. Ele tinha mãe. Uma mãe que lhe preparou o caminho. Uma mãe que vivia a tradição da piedade e havia renovado a sua espiritualidade num encontro dramático com Deus. Acima de tudo, Samuel tinha uma mãe que havia sido fiel a Deus.


Conhecemos essa história. Em artigo anterior me referi a essa mulher que não deixa de me cativar. Pelo realismo com o qual ela se coloca diante de Deus, falando da sua dor e da sua amargura. Pela intensidade e franqueza com a qual olha para Deus e clama para que Deus olhe para ela. Pela altivez com a qual enxuga as suas lágrimas e se coloca diante do sacerdote Eli com o seu coração transparente. Pela forma como se levanta do seu tempo de oração e encara a vida com segurança e esperança. E, não por último, pela firmeza com a qual cumpre a sua promessa a Deus, entregando o seu desejado filho ao serviço de Deus (1 Sm 1. 1 - 2.16).


Samuel tinha mãe! E dela extraiu inspiração e modelo de vida, formando-o e animando-o a servir a Deus no decorrer de toda uma história..


A igreja tem mãe! A comunidade de fé tem mãe. Algo muito importante que deve ser lembrado cotidianamente. Reiteradamente. Não há cristão in vitro e aqui não há produção autônoma. Que o saibam todas as igrejas e todas as lideranças... e todos os pastores. Lideranças e pastores que, por vezes, pensam que se fizeram sozinhos e se comportam como àqueles de quem a igreja depende, ou seja de sua posse.


Não é demais, pois, ressaltar que a missão é de Deus e nós somos frutos da comunidade da fé, mesmo que tenhamos nos convertido através da mensagem escutada de um programa de rádio. Temos uma mãe que pode se chamar Ana e um pai que dificilmente se chamará Elcana. Mas eles serão os nossos pais e mães na fé.


Nesse momento em que a igreja se expande e tantas de nossas lideranças vivem a tentação da corrida pelo sucesso é importante ressaltar que Samuel não existe sem Ana e Elcana. E que a missão da igreja deve ser vivida assim; cercada pela comunidade de fé e experimentada no universo dessa nuvem de testemunhas que compõe a caminhada histórica do povo de Deus.


Deus não precisa de heróis, mas de pessoas fiéis

E assim Samuel vivia cada dia.

À medida que vou acumulando anos de vida, os meus olhos passam a buscar outras coisas. Os anos reenfocam as perspectivas. E assim eu me percebo correndo os olhos pelas fileiras da vida, buscando os referenciais de homens e mulheres que estão amadurecendo e envelhecendo na fé. Aquela fidelidade que se acumula durante os anos; e tantas vezes sem desfiles e bandeiras. É enigmático que a própria Bíblia não apresenta tantas pessoas assim que exalam estes referenciais. Mas Samuel é um deles: um homem de Deus, fiel até a morte.


O seu ministério, ainda menino, começa com muito poder. Não é pouca coisa, afinal, receber a palavra de Deus numa época onde essa própria palavra era rara. E ele começou a receber esta palavra nas barbas de um profeta chamado Eli, conforme o próprio texto o detalha ( 1 Sm 3. 1 -14).


E assim Samuel servia a Deus e crescia. Crescia e servia a Deus. A sua mãe, que lhe fazia a túnica de cada ano, era testemunha desse crescimento. E o menino que servia ao Senhor tornou-se no jovem que servia ao Senhor. E Samuel tornou-se num andarilho da obediência, transformando-se num agente central de alguns dos momentos chaves da história do povo de Israel; da unção a execração de Saul até a escolha e a unção de Davi. Samuel, pois, envelhece; obediente ao voto da sua mãe e em seguimento a voz de Deus que determinou a geografia da sua vida.


A missão, se diz, olhando para Samuel, é uma questão de vida. Vai da oração da mãe, por um rebento, até a cabeça branca e envelhecida deste andarilho do Senhor. A nossa igreja precisa de pessoas assim; que têm mãe e envelhecem no serviço do Senhor. E assim diz Samuel:

“Agora, pois, eis que tendes o rei à vossa frente. Já envelheci e estou cheio de cãs, e meus filhos estão convosco; o meu procedimento esteve diante de vós desde a minha mocidade até ao dia de hoje” (1 Sm 12.2)

Mas nem tudo vai bem em Siló

É impressionante como estamos nos tornando hedonistas; queremos ter prazer em tudo e a todo momento. Cada culto precisa ser muito bom, cada dia precisa ser uma vitória, cada evento uma bênção. E a vida cristã um sucesso.


Mas a vida não é assim. E a vida cristã também não. Há tempo de perguntar se tudo está bem, mas também há tempo para abraçar o outro em silêncio como sinal da presença no luto.Há tempos na nossa vida que parecem uma colheita só. Mas o tempo do deserto, onde a aridez parece abundar, também tem o seu lugar e precisa ser acolhido. Na linguagem de Ana, há tempo de esterilidade e há tempo de gravidez. Há tempo da oração da agonia e tempo da oração vitoriosa. Tempo do choro e tempo da dança. E o autor de Eclesiastes sabia disso quando diz que “há tempo para todo propósito debaixo do céu” (Ec 3.1).


É importante aceitar que na vida cristã nem sempre vai tudo bem. Há situações que parecem não querer nos obedecer e momentos nos quais parece que as coisas estão muito descontroladas. Num momento Samuel está lutando contra um povo que quer um rei , quando ele quer lhes convencer de que isso não é preciso porque Deus é o rei do povo (1 Sm 8). E derrotado ele é chamado por Deus a ungir o primeiro rei de Israel, na pessoa de Saul. Mas este mesmo Saul, que foi por Samuel ungido num dia, será por ele confrontado e afastado no outro dia.


Mas onde tudo isso se torna tão cruelmente realidade é na própria família de Samuel. Pois, assim como os filhos de Eli, também os filhos de Samuel não seguiram os caminhos do Senhor. E isso Samuel precisou ouvir da boca dos líderes do povo, quando eles lhe disseram, pedindo por um rei:

“Vê, já estás velho, e teus filhos não andam pelos teus caminhos” (1 Sm 8.5).

E quebrantado Samuel abaixa a cabeça e silencia. E o coração do pai sangra.


Na vida cristã é importante reconhecer as nossas dificuldades e aceitar as nossas limitações.


Apontando Caminhos

Eu vou continuar meditando nessas coisas da família de Elcana e gostaria de convidá-lo a fazer o mesmo. Mas hoje a gente encerra mais um capítulo dessa reflexão e procura apontar em algumas direções.


É bom poder orar antes e depois da gravidez. Aquela Ana que, no templo, ora em agonia a Deus, compõe um dos bonitos cânticos da Bíblia. Um cântico de realização humana, gratidão a Deus e profundo conteúdo teológico. Um cântico que proclama a Deus como Senhor da história. E senhor da igreja, diríamos hoje. Senhor da Ana e da Maria, cujo cântico é parecido com o de Ana. Senhor de Elcana e José. Senhor meu e seu.


E não se deve esquecer de cumprir os votos da agonia, o que parece ser tão comum. Na luta contra a esterilidade é tão normal que a gente busque a Deus. Mas na festa da gravidez é tão comum esquecer de convidar àquele mesmo que nós invocamos na angústia. Ao nso esquecermos do voto da agonia nos estamos ajudando a comprometer a opção da próxima geração. Os nossos filhos, afinal, irão respeitar uma fé que não cumpre com os votos que nascem banhados por esta mesma fé? O cumprimento do voto hoje é um sinal de fidelidade e um convite a fidelidade para a próxima geração.


E, de voto feito e de voto cumprido a gente vai acumulando uma reserva de experiência e credibilidade histórica. Um legado inestimável à próxima geração. A fé cristã, que é pessoal, comunitária e histórica vai sendo construída assim, no decorrer da própria história. E isto nós não podemos esquecer, ainda que sejamos filhos e filhas da cultura do imediatismo e do experimentalismo.


E que venham as cãs mesmo que nem sempre tudo vai bem. E nem sempre tudo vai bem, como Ana, Samuel e nós o sabemos muito bem. Mas Deusl não promete constante bem estar. O que ele nos promete é fidelidade em cada esquina da nossa vida. E o que ele quer é falar conosco em cada etapa da nossa vida e desenvolvimento do processo histórico.


E assim nós clamamos hoje e amanhã, na esterilidade e na gravidez, que Deus fale conosco. Porque é esta palavra de Deus que alimentou a vida de Samuel e se constitui na fertilidade da nossa vida.


FALA, SENHOR, QUE O TEU SERVO OUVE (1 Sm 3. 9)

Pois, a missão é de Deus.

 

Publicado originalmente na Revista Ultimato.

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