A Palavra que lemos e o que lemos na Palavra
Se você é uma dessas pessoas que costuma ler a Bíblia, então não é muito difícil descobrir quais são os livros e textos de sua preferência. Basta olhar para a sua Bíblia fechada e observar quais são as partes mais escuras . . . marcas dos seus dedos no papel branco. Pode ser, por exemplo, que a borda da sua Bíblia esteja limpa e branca, marcada apenas por uma leve faixa escura lá pelo meio da sua Bíblia e a probabilidade é grande de que você não tenha feito mais do que andar lendo os Salmos. Afinal, para momentos difíceis os salmos sempre são um bom recurso e uma boa companhia.
O povo evangélico é conhecido pelo seu carinho e reverência para com a Bíblia. Pois ela nos oferece essa Palavra de Deus que dá sentido e rumo a nossa vida. Somos, pois, conhecidos como o povo da Bíblia. Alguns, brincando, até diriam que é possível identificar a igreja de um evangélico pelo seu jeito de ele ou ela carregar a Bíblia. Se a pessoa, por exemplo, carregar a Bíblia debaixo do braço a probabilidade é grande de que ela seja da Assembléia de Deus. Mas se ela carregar a Bíblia dentro da bolsa ela seria da...(psiu! Segredos não devem ser revelados).
Mesmo que tenhamos esse carinho para com a Bíblia é muito difícil a gente levar em conta toda a Palavra em todas as situações. Pessoas, igrejas e instituições acabam tendo as suas preferências. Ou seja, acabamos lendo e interpretando a Bíblia de forma seletiva e formulando uma teologia estreita. Por exemplo, se a nossa origem for no protestantismo histórico a nossa tendência seria ler o texto, da assim chamada "Grande Comissão", conforme descrita no evangelho de Mateus (Mt 28.18-20). No entanto, se formos da vertente pentecostal a tendência seria a de ler, este mesmo texto, conforme apresentado no evangelho de Marcos (Mc 16.15-18). Pois, neste caso, os sinais e milagres acompanham a pregação do evangelho.
Não há problema em termos as nossas preferências, no que se refere a nossa relação com a Palavra de Deus. O problema começa quando não conseguimos ir além das nossas preferências e nunca conseguimos que os textos não preferenciais possam falar aos nossos corações e mentes. Ademais, o problema se torna ainda mais sério quando julgamos os outros por não terem as mesmas preferências que nós temos, por não lerem os mesmos textos que nós lemos, interpretando-os do jeito que nós o fazemos. A própria Bíblia nos convida para uma constante abertura; tanto para com o texto como para o outro que também lê o texto, mesmo que o texto que ele lê seja, por vezes, outro.
O profeta Ezequiel existe!
Eu tenho lá os meus anos de convivência com esta velha-nova Palavra de Deus. Ela parece ter um jeito especial de não envelhecer e, por assim dizer, "rejuvenecer" a gente que a lê. Eu continuo encantado com essa Palavra e de namoro com esse Deus que me fala através dela. Mas tenho, também, lá as minhas preferências. Se você analisar a borda da minha Bíblia você vai perceber que aquelas partes da Bíblia onde se encontram os evangelhos tendem a escurecer antes e mais do que a parte final da Bíblia, onde estão as cartas do Novo Testamento e o livro de Apocalipse. Livros como os de Isaías e Jeremias me têm atraído mais do que, por exemplo, o livro de Daniel, com os seus sonhos e visões de difícil interpretação. É que eu prefiro os textos históricos, com a sua relativa linearidade. Histórias e acontecimentos da vida que conectam com esse meu jeito de perceber e discernir as coisas da própria vida. Mas foi então que, contrário a minha tendência, eu fui parar no livro de Ezequiel. É que uma das pessoas que eu estava lendo dizia que o livro de Ezequiel e do Apocalipse são os livros do nosso tempo. E lá me fui eu a dar uma espiada no livro deste profeta que atendia pelo nome de Ezequiel e que, já no primeiro capítulo, apresenta três diferentes visões. Pois não é que eu fiquei preso logo nas primeiras páginas deste fascinante e difícil livro. A tal ponto de estar aqui a conversar com vocês.
Nestes tempos místicos!
Mas por que, afinal, o livro de Ezequiel seria um livro para os nossos tempos? É que estes são tempos de abertura para o espiritual. Tempo de busca de visões e experiências. Tempos diferentes! Eu me lembro dos meus anos de ministério estudantil quando o ambiente era tomado por perguntas de cunho político e histórico. O cristianismo é "ópio do povo" nos diziam os estudantes marxistas, perguntando agressivamente pela proposta do cristianismo visando a mudança radical da sociedade. Estes eram os tempos onde ser secular era estar na onda. A autonomia do ser humano era anunciada e buscada. Quanto a Deus... Para ele se reservava uma espécie de "aposentadoria pelo INSS" que mal e mal dá para sobreviver. E a própria religião, assim pensavam muitos, era coisas para crianças e idosos.
Como sabemos, no entanto, o mundo secular ruiu. Na busca da autonomia as pessoas sentiram muito frio. As mudanças radicais se mostraram radicalmente inexistentes e tudo o que restou foi este capitalismo neo-liberal que acentua as diferenças entre as pessoas e, na sua expressão menos cruel, permite a administração da sobrevivência. A década de noventa é literalmente diferente. Insegura. Caótica. Desestabilizadora. Uma fascinante areia movediça. O palco ideal para a volta do religioso e a busca do místico. Época em que a pirâmide tem assento na mesa do professor de lógica e os cristais não saem do bolso do ex-marxista.
Por estes tempos místicos, também os cristãos são afetados. Num primeiro momento até chegamos a nos alegrar pois Deus parece "ganhar" o seu espaço de volta e as pessoas começam a ter abertura para as coisas espirituais. Num segundo momento, porém, percebemos que abertura espiritual não significa, nem automática nem necessariamente, abertura para o Deus de Jesus Cristo revelado nas Escrituras. A abertura espiritual parece ser antes e por vezes uma abertura mística em busca de uma "experiência quente". E nessa busca qualquer coisa vale; do orientalismo mais excêntrico às mentalizações mais exóticas... o importante é que a pessoa se sinta bem.
O que se percebe, também, é que esta busca mística não é coisa somente "lá de fora". Algo que está em voga entre os não cristãos. Mas ela está presente também entre nós cristãos. Está presente na igreja. Pois nós somos, também, filhos desta geração pós-racional e pós-secular. Geração em busca da experiência. Geração mística. Não é a toa que a experiência e a expressão estão tendo um lugar tão significativo na nossa vida cúltica. Afinal, nós não queremos participar do culto apenas para "aguentar o sermão". Nós queremos sentir alguma coisa. Participar de uma experiência real. Uma emoção forte. Somos, pois, filhos da geração experiencial dos anos noventa.
Discernindo os tempos
Como cristãos somos simultaneamente filhos e críticos do nosso tempo. Na minha época de ministério estudantil, como mencionei anteriormente, era importante não perder a dimensão da espiritualidade em meio à busca por um cristianismo que tinha dimensões ético-políticas. Hoje, com toda a busca da transcendência é importante não esquecer que a fé cristã só é cristã se e quando ela cumpre a sua vocação para a encarnação, a concretização individual, comunitária e social. Se ela se mantém no nível da realidade, sem escapar para o excêntrico e o exótico. O meramente experimental.
Uma das dimensões da riqueza da fé cristã é que ela tem palavra para cada época e precisa ser pronunciada em cada tempo. É palavra que está acima das modas e se pronuncia signficaticamente a cada geração. É palavra que entende a busca, o conflito de cada tempo. É palavra que discerne o engano e o pecado de cada época. É palavra de Deus para cada pessoa, em cada cultura, em cada época em todo tempo.
Deus vem!
A fé cristã vive e se alimenta da revelação. Ela não é, por isso, uma mera religião. Ela não apresenta uma proposta acerca da busca por Deus. Pois esta busca é impossível. Tudo o que a religião consegue encontrar, por mais espiritual que a sua busca seja, é o espelho da sua própria confusão e miséria. É por isso que a religião é sempre uma criação segundo a imagem do ser humano. E nunca chega lá. É aperitivo sem prato forte. É cheiro de comida sem comida. É trovoada sem chuva.
O que a fé cristã anuncia é que Deus vem ao nosso encontro. Deus tem a iniciativa. Ele se revela. Tem algo a oferecer. Ele discerne as necessidades e sabe se comunicar de forma adequada e relevante. Deus fala a nossa língua e nos engaja no desenrolar da sua história que sempre quer ser história para a salvação.
É disso que fala o livro do profeta Ezequiel: "Aconteceu no trigésimo ano, no quinto dia do quarto mes, que, estando eu no meio dos exilados, junto ao rio Quebar se abriram os céus, e eu tive visões de Deus"(Ez 1.1).
Quando Deus fala tudo pára. Os limites do tempo e do espaço se tornam relativos. Os céus e a terra perdem a sua distância. As próprias percepções humanas se ampliam e as possibilidades de comunicação se tornam do tamanho que Deus quiser. No livro de Ezequiel os céus se abrem e visões se tornam realidade porque Deus tem uma palavra. Isto é fantástico. Mas é também esclarecedor. Pois vejamos: os céus não se abrem como resultado de uma busca mística. As visões não acontecem porque alguém tem sede de uma experiência. Os céus se abrem e as visões acontecem porque Deus quer falar. Ele tem uma vocação para o seu profeta. As visões, portanto, são da iniciativa de Deus e estão a serviço da história da salvação de Deus. A visão é para a vocação e está a serviço da Palavra de Deus. Aliás, ela abre caminho para que Deus possa falar.
Vivemos da palavra que brota da boca de Deus.
Deus vem com a sua palavra e a palavra pronunciada por Deus nos coloca em contato com o próprio Deus. E isto também é fantástico. Deus não é uma múmia. Uma estátua. Ele fala. Ele se comunica. Ele entra em contato conosco. Ele nos convida e nos convoca a sermos participantes desse seus jeito de escrever a nossa história.
A sua palavra é a nossa vida. Se Deus ficar quieto nós morremos. Se os céus não se abrirem a alma murcha. Se não houverem sonhos a boca fica seca. Mas Deus fala. E ele o faz expressamente e endereçadamente, como diz o livro do profeta: "veio expressamente a palavra do Senhor a Ezequiel, filho de Buzi, o sacerdote, na terra dos caldeus, junto ao rio Quebar, e ali esteve sobre ele a mão do Senhor" (Ez 1.3).
A palavra de Deus é pessoal. É concreta. Não é meramente para o outro. É para mim. É para Ezequiel. Alguém que tem nome. Tem descendência, vocação e endereço. O seu pai se chama Buzi, a sua vocação é ser sacerdote e ele vive "junto ao rio Quebar". Essa concreção histórica é fundamental. Deus é concreto e se comunica com intencionalidade e especificidade. A sua revelação tem endereço certo. Eu confesso que fico preocupado com esse tipo de espiritualidade que se espalha em nossas igrejas, nestes tempos místicos, e que não tem endereço, não tem especificação histórica e não implica em compromisso concreto de obediência. Me desculpem, mas eu não acredito que Deus nos dê revelações simplesmente para que, no culto de domingo à noite, nos sintamos bem na igreja. E, no domingo seguinte voltamos para buscar por outra revelação. E durante a semana não acontece nada a nível dos frutos do Espírito. A revelação pela revelação não existe. Se a revelação vem de Deus ela implica em obediência e serviço. E, muitas vezes, em sacrifício. A relevação é instrumental. É canal para a palavra convocatória de Deus. O importante não é a revelação mas a palavra que Deus quer pronunciar através dela. É por isso que nós evangélicos nos dizemos a igreja da palavra.
A palavra entre o rio e o rei
É impressionante como o texto bíblico se preocupa com detalhes que nós pensaríamos ser secundários. Pois afinal, que importância tem que nós saibamos o nome do rio junto ao qual Ezequiel recebeu esta vocação de Deus. Ademais, ele nos fala do ano, do mês e do dia. Nos deixa saber o contexto de cativeiro em meio ao qual a revelação tem lugar e nos dá o nome do rei da época. Joaquim era o seu nome. Num primeiro momento se poderia dizer, que importa se o rei era Itamar ou Sarney? Em verdade importa muitíssimo. É que a palavra de Deus é encarnada. Ela acontece num lugar concreto em meio a um momento histórico específico. A fé cristã é histórica. Transmitida a gente de carne e osso. Gente que tem pai e mãe. Gente que tem descendência, vive em algum lugar e experimenta "cativeiros e exílios". Gente que se afasta de Deus e tem necessidade de ser chamada de volta. Gente que machuca um ao outro e precisa aprender a viver em comunidade. Gente que depreda a natureza e precisa ser convocada para o exercício da mordomia e da responsabilidade ecológica, política, econômica e cultural.
Na minha experiência essa palavra dado ao profeta Ezequiel se tornou palavra para mim. E, me chegou no momento certo. No tempo de Deus para mim. Foi, em verdade, palavra de Deus para mim. Ela me lembrou da iniciativa de Deus em comunicar-se conosco. Essa palavra de Deus que dá sentido, colorido e sabor a nossa vida. Me recordou dessa imponência de Deus a serviço de quem os céus e as visões são mobilizados e instrumentalizados. Me convidou a entrar em contato com a realidade concreta da minha vida e da vida ao meu redor. Me reconvocou para o exercício da vocação no mundo a serviço de Deus. E, me abençoou com a sua presença. Pois, como diz o texto, "e ali esteve sobre ele a mão do Senhor". E isso me basta.
Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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