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Foto do escritorValdir Steuernagel

A teologia da barriga do peixe

Volta e meia, eu acabo voltando ao livro de Jonas. Ele é carregado de um imaginário forte. Capta a atenção com uma enorme facilidade e se dispõe às mais variadas interpretações, tanto teológicas como exegéticas. Donde e como ele surgiu e o que ele quer dizer acumularam, no decorrer da história, uma enorme gama de interpretações.


As figuras que circunscrevem o livro são fantásticas. Os capítulos são apenas quatro e o livro é qualificado como sendo parte dos profetas menores. É, de fato, um livro pequeno. Mas as imagens, figuras e linguagem que o texto usa são enormes. Nínive e Társis são, afinal, cidades opostas. E enquanto Deus quer mandar Jonas a Nínive, ele quer ir a Társis. Nínive, descrita pelas palavras “maldade” e “violência”, aponta para o nível da realidade. Tarsis é o lugar da auto-escolha que aponta para o sonho.


E depois tem o mar, com os seus componentes naturais e assustadores. O navio e os marinheiros são figuras corriqueiras e os portos e os mares estão cheios deles. Viajantes calejados. As ondas, é óbvio, fazem parte do mar, assim como o sal faz parte da sopa.


Mas aquelas ondas eram coisa do outro mundo. O seu tamanho e a sua volúpia deixaram assustados os próprios marinheiros. Estes, no seu susto, apelaram para a religião. Ou, em palavras mais sacras, apelaram para a interpretação teológica do acontecido: “Aqui deve ter o dedo de Deus, quem quer que ele seja”. A este, pois, eles não deixaram de clamar:


“Ah! Senhor! Rogamos-te que não pereçamos

por causa da vida deste homem,

e não faças cair sobre nós este sangue, quanto a nós, inocentes;

porque tu, Senhor, fizeste como te aprouve.” (Jn 1.14)


A ironia do sono de Jonas não deixa de ser uma das coisas tragicômicas do texto. Qualquer criança sacode a cabeça diante do estranho e deslocado sono desse profeta fujão. Sono da fuga a se esconder da consciência e de Deus, como sabemos tão bem.


E, não por último, tem o peixe, com a sua estranha boca e sua enorme barriga. Uma boca que não destroça o profeta e uma barriga que lhe dá o suficiente espaço de vida. É verdade que essa vida tem lugar em meio a peixes vivos e mortos, algas e musgos impossíveis de serem discernidos naquele escuro inferno molhado.


Dando um pulo para o imaginativo e contemporâneo, podemos imaginar o Jonas tentando tirar da sua pele, envelhecida pela experiência, esse estranho cheiro de ventre e de peixe. E haja água, sabonete e desodorante! A sua primeira noite, então, foi um pesadelo. Em meio ao privilégio da cama e a vontade do sono, ele não se livrava das imagens loucas do ventre, da escuridão da sua experiência e do significado de todo aquele evento. Poucas camas haviam testemunhado tanta inquietação noturna. Um vira-vira sem fim.


O interessante, no entanto, é que é na barriga do peixe que Jonas articula a sua melhor teologia. Na escuridão do ventre ele se entrega como nunca havia feito na claridade das suas opções. Ele se rende tanto a Deus como a si mesmo.

Em todo o resto do livro de Jonas não se encontra tanta teologia como a que foi formulada em forma de oração no ventre do peixe. Teologia que nasce da finitude, vulnerabilidade e angústia. Teologia que se sabe nas mãos de Deus, mas parece não ver um caminho de saída, tendo à sua frente apenas o escuro ventre do peixe a limitar o seu espaço. Teologia que proclama o fim da auto-caminhada. E, perdido, se joga nas mãos de Deus. Teologia da dependência de Deus.


“Na minha angústia clamei ao Senhor, e ele me respondeu;

do vente do abismo gritei, e tu me ouviste a voz.

Pois me lançaste no profundo, no coração dos mares

e a corrente das águas me cercou;

todas as tuas ondas e as tuas vagas passaram por cima de mim.

As águas me cercaram até à alma,

o abismo me rodeou;

e as algas se enrolaram na minha cabeça

até aos fundamentos dos montes.

Desci até à terra, cujos ferrolhos se correram sobre mim para sempre;

contudo fizeste subir da sepultura

a minha vida, ó Senhor, meu Deus!

Quando dentro de mim desfalecia a minha alma,

eu me lembrei do Senhor; e subiu a ti a minha oração,

no teu santo templo.” (Jn 2. 2-3, 5-7)

A verdade é que a melhor teologia -- a mais lúcida teologia da transpiração -- é aquela que nasce na experiência da vulnerabilidade e da dependência. É a teologia que nasce de uma fraqueza que se abandona às mãos de Deus e transforma em espaço e futuro a falta de alternativa: as entranhas do peixe.


Outro dia eu tive um pequeno vislumbre do que isso significa. Para fazer uma ressonância magnética, eu precisava ser colocado dentro de uma espécie de tubo; uma sofisticada “barriga de peixe”. (sem algas, é verdade).


Quando, ao preparar-me para o exame, o técnico responsável me disse que esperava que eu não fosse claustrófobo, a angústia irrompeu dentro de mim com uma força indomável. Eu, disciplinadamente, até que tentei me submeter ao exame. Fiz uma parte dele, mas não houve jeito de continuar. Mas, como não havia maneira de fugir, voltei lá, devidamente sedado e cercado por gente do coração, tais como a esposa. E tudo isso me ajudou a ser levado para o tubo.


Mas foi Deus quem realmente fez a diferença. O pessoal “lá fora” apontava para ele. A possibilidade de invocá-lo e pedir pelo seu abraço me deu a força de terminar o exame. Assim, de olhos fechados para não ver o tubo, eu pedi que Deus me abraçasse. É tão significativo que na fraqueza Deus se mostra quem ele é. É quando nos confrontamos com a nossa pequenez que ele se torna presente e afável. E quando começamos a ver quem somos é que ele se mostra como ele é.


Ao passar por essa experiência, a luta de Jonas no ventre do peixe ganhou um novo colorido. E eu comecei a ver como somos parecidos com ele. Cantadores de galo quando em espaço aberto, nos vemos insignificantes diante do limite, do escuro e da vulnerabilidade.


É nesse momento, pois, que levantamos os olhos para Deus e fazemos a nossa melhor teologia. Teologia da soberania de Deus que contemplamos com esperança. Experiência da nossa vulnerabilidade que se sabe carente do abraço de Deus. É isso, graças a Deus, é universal. Vale para todos em todo tempo. É no encontro que Deus nos possibilita na barriga do peixe que identificamos a semente da sua universalidade. Universalidade do abraço que se expressa, acima de tudo, no convite para a salvação.


 

Publicado originalmente na Revista Ultimato.

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