Pensando em voz alta
Já nos disseram que chegar à Noruega no inverno não é a melhor coisa. Outro dia a Silêda e eu fomos convidados para jantar com uma família daqui; e o dono da casa me disse, olhando pela janela: “Está vendo aquela neve ali? Ela chegou em outubro e até hoje não foi embora. E já estamos no final de março!” De fato, o inverno neste país é longo e rigoroso. E este ano, dizem eles, foi especialmente intenso.
A Silêda e eu não viemos para cá para aprender a andar no gelo (o que não deixa de ser um aprendizado difícil!). Nós queríamos um tempo de mudança. Com um pouco de quietude, descanso e estudo. Um tempo longe dos muitos papéis, reuniões e tarefas administrativas. E viemos parar na Noruega, onde estou dando aulas, além de estarmos em contato com algumas igrejas e grupos de missão.
Estou aqui em Oslo, mas penso no Brasil. Não simplesmente porque continuo vendo as notícias do Brasil, mas também porque creio ser importante que a igreja brasileira vá conversando e aprendendo com outras experiências e outros momentos de vida. É verdade que a Noruega é um país muito diferente do nosso. Além de ser um lugar frio, é também um país rico e caro. O índice de qualidade de vida é o mais alto do mundo, mas a gente acha as coisas aqui exorbitantemente caras. Quando a gente compara as coisas com a nossa moeda, falta cair de costas; mas já aprendemos que isso não se deve fazer.
A igreja que existe aqui tem um desenho que para nós é não somente estranho, mas de difícil digestão. A grande igreja na Noruega é estatal e luterana. Assim, o rei, o Estado e a igreja representam um casamento que nós temos dificuldade de ver funcionando bem e de aceitar. As outras igrejas, assim chamadas “livres”, são bastante pequenas e não têm a experiência de crescimento que vemos e experimentamos no Brasil.
Mas este arranjo não significa que a igreja esteja morta ou que dentro dela não haja forças vivas se movimentando. É fato que o nominalismo aqui campeia à solta. Tem muita gente que não quer saber de igreja e a frequência nos cultos é bastante fraca. De fato, este país tem experimentado forte avivamento no decorrer de sua história; e ao lado das igrejas estatais existem numerosos lugares, ora intitulados “casas de missão”, ora “casas de oração”. Enquanto as igrejas representam o espaço do clero oficial, estas representam o espaço do leigo e da ministração espiritual mais profunda. Diz-se então que o domingo de manhã é dedicado à igreja, mas o estudo bíblico, a reunião de oração e os encontros de evangelização e edificação acontecem nessas casas especiais. Além disso, existem no país muitas agências missionárias e milhares de grupos de missão. Alguns deles funcionam há mais de cem anos, reúnem-se mensalmente e mantêm vivo um compromisso de retaguarda com uma missão e/ou um missionário em algum lugar, que pode até ser o Brasil. É assim que muitos missionários têm sido sustentados com muita fidelidade e por muito tempo.
A nossa experiência aqui, portanto, está indo além do gelo, que teima em não derreter, mas nos permite ver e aprender muitas coisas. Permite-nos olhar para uma realidade e pensar na outra: a nossa realidade. O que eu compartilho com vocês, leitores da Ultimato, é um pouco do fruto dessa observação empírica e dessa análise solta, que não deixa de ser muito provisória.
Portas abertas e portas fechadas
Faz anos que eu escutei, em Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia, um sermão que tinha como título uma expressão que considero ao mesmo tempo petulante e verdadeira: “Esta é a hora de Deus para a América Latina”. Eu mastiguei muito esta expressão, com a qual não sabia bem se podia concordar. Mas hoje estou em paz com essa afirmação, desde que a gente não se orgulhe dela. Desde que a gente a diga de forma não exclusiva e na oração de que Deus tenha tantas horas quantas possível e que estas se concretizem em tantos lugares quanto possível. Mas eu também tenho percebido que essa afirmação é verdade. Vejo que ela expressa uma oportunidade. Afinal, esta é uma hora bonita para a nossa igreja na América Latina. Esta é uma hora de evangelização fácil no nosso continente. É uma hora fértil para o estabelecimento de novas igrejas entre nós. Quase sempre, a firme decisão de fazer alguma coisa é o suficiente para que isto aconteça. Assim, se uma igreja local decide implantar uma igreja noutro lugar, o resultado depende muito mais do esforço e da dedicação de quem a implanta do que da possível reação do lugar, que é quase sempre relativamente positiva. Quase sempre há pessoas que respondem ao convite do evangelho e passam a fazer parte integrante da igreja. Mas aqui na velha Europa isto nem sempre acontece. O chão aqui soa duro, as pessoas são muito mais céticas e a igreja parece ser considerada uma “coisa” do passado.
Eu não entendo muito bem, nem preciso entender, como funcionam os desígnios de Deus; mas não é muito difícil concluir que a Europa de hoje é um campo missionário difícil. É um lugar onde se encontram muitas portas fechadas. É uma sociedade que olha para a igreja sem esperança, que a considera uma grandeza do passado e destituída de respostas para o futuro e para a nova geração. E temos de admitir que a própria igreja é uma das causadoras desta realidade. Ela é uma parte tão profunda do que está aí e integra a cultura local de forma tão intestina que não consegue articular uma palavra profética e que represente uma esperança para a sociedade. Ela se tornou um establishment sem adrenalina e sem corte. Tornou-se estrutura e cultura, tradição e costume.
Eu já estive na Europa algumas vezes. Tenho conversado com pessoas e falado em encontros e conferências. Celebro as forças vivas da igreja daqui e honro os seus esforços missionários, que são uma realidade, tanto interna quanto externa. Mas sinto no coração um peso pela igreja européia. Eu compartilho da sua dificuldade de sair do marasmo e do areão e de encontrar caminhos de alegria e de esperança.
Quando se olha para a história de vários países europeus não é muito difícil concluir que as portas estiveram abertas ontem, mas parecem estar muito emperradas nos dias de hoje. Olho então para a América Latina e penso na hora de oportunidade que Deus nos está dando. Estamos vivendo esta hora com zelo, alegria e responsabilidade? Estamos honrando as portas abertas que Deus está nos dando hoje e edificando uma igreja que continue crescendo amanhã, que represente uma opção significativa para a nova geração e que seja altamente significativa para a sociedade, especialmente para aqueles que estão longe do evangelho e para os que são pobres e pequenos?
Portas abertas são sempre uma graça de Deus e nunca podem ser encaradas como óbvias. Elas só podem ser adentradas com o sagrado sentimento de temor ao Senhor.
Buscando o encontro entre o rito e o significado
As coisas na vida são mais rotineiras do que imaginamos. Uma geração acaba fazendo as coisas de forma bastante parecida com a anterior. Às vezes a mudança faz um barulho enorme, quando na verdade só mudou a embalagem. As coisas na vida são simultaneamente simples e complexas. Elas são simples porque a natureza humana é a mesma e os caminhos que escolhemos são bastante comuns; mas são também complexas, porque nós temos uma capacidade enorme de nos enredar nos fios da nossa própria caminhada.
É normal que também a igreja crie suas formas e estruturas, seus ritos e costumes. Afinal, ela precisa de um lugar para se reunir, um tempo para começar e outro para terminar os seus encontros, um jeito para dar início aos encontros e outro jeito para concluí-los. Ela precisa de algum tipo de calendário, programa e forma, e disso ninguém consegue fugir, por mais diferente que seja a porta dessa entrada para a estrutura e o rito. Quando se começa, muitas vezes não se quer nada disso e tenta-se ser diferente, mas o que acabamos criando nem sempre é tão diferente e nem sempre é melhor.
Também a igreja entre nós tem encontrado suas formas. Tem encontrado um jeito de se estruturar e um ritual que procure dar significado ao nosso encontro e ao encontro de Deus conosco. Como é possível que isso aconteça de forma tranqüila e significativa? Haverá um jeito de fazê-lo de tal forma que a semente da renovação seja plantada na nossa caminhada histórica?
A igreja na Europa tem a sua história e eu estou muito longe de conhecê-la em suas muitas facetas. Mas não é difícil concluir que as estruturas que hoje existem, procuraram responder a um desafio que se viveu ontem. Um jeito de dar corpo para a obediência de fé, em muitos casos. Hoje, por exemplo, não vemos muito sentido numa igreja estatal; mas isso quem está dizendo é um brasileiro. O que eu tenho ouvido, porém, é o suficiente para dizer que a igreja se configurou desse jeito porque os cristãos eram muitos, impactaram e forjaram a sociedade e queriam encontrar uma forma em que a fé cristã marcasse toda a vida, inclusive a vida pública. Muitos anos se passaram e hoje se percebe que a estrutura ficou, mas o conteúdo parece ter ido embora de muitos lugares. Hoje essa mesma estrutura parece ter dificuldades de apelar para o coração das pessoas e para a nova geração, embora ainda cumpra um papel na sociedade. Ou seja, as pessoas procuram a igreja para a realização dos ritos religiosos, e isto é importante para elas. Mas isso não significa que elas tenham qualquer outra participação na vida comunitária ou vejam na igreja um significado profundamente relacional, ou que ela seja portadora de uma mensagem salvífica que as pessoas precisam conhecer e abraçar. O rito ficou, mas o significado foi embora. O rito não deixa de ser importante, mas ele é só um rito e o significado que o moldou já foi embora e não se quer que ele volte.
É muito fácil para nós, que vivemos numa igreja jovem, criticar e descartar esse modelo de sociedade e propor algo mais vivo, rápido e ligeiro. Aliás, esta me parece ser uma das coisas que a igreja daqui precisa: um pouco do nosso barulho, da nossa adrenalina, da nossa inventividade e da nossa relacionalidade. Mas isto não significa dizer que nós não estejamos construindo as nossas formas e estabelecendo os nossos ritos. Nem significa que, com o passar dos anos, o significado que cria o rito vai continuar conferindo legitimidade a este. No decorrer da história e no passar das gerações os ritos tendem a permanecer por muito mais tempo do que o significado, e é bom que saibamos disso.
Nós precisamos aprender com os outros e com a história –
essa é a pura verdade. Mas não vamos aprender somente para repetir, pois a história não precisa se repetir. Ela não é determinista, por mais que acabemos repetindo as coisas. O desafio que experimentamos hoje visa encontrar formas, estruturas e ritos que mantenham e alimentem o significado. Aliás, o desafio maior é vivermos o significado de tal maneira que a geração que vier depois de nós tenha sede de significado e não apenas pratique o rito destituído de significado. Estamos fazendo isso? Estamos ouvindo os nossos filhos e dando espaço para as novas gerações?
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Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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