Fortaleza me encanta. Suas praias me fascinam. Mastigar uma castanha de caju, tomar uma água de coco, comer um peixe com as mãos à beira-mar... é fascinante. Até parece cardápio de burguês.
E as praias, então, parecem não ter nem fim na sua extensão nem limite na sua beleza. E, sendo tão iguais, elas acabam sendo tão diferentes. Numa a areia é finíssima, noutra ela é mais grossa. Numa a água parece querer brincar quando logo ali está chamando a gente para brigar. Numa a água parece querer espelhar o azul do céu quando noutra o verde das águas, teimoso, proclama que o mar é mais ele.
Mas Fortaleza também desencanta. Fortaleza, afinal, é Brasil. Suas contradições sociais são fortes e violentas. Atrás de cada turista bronzeado pelo sol há muita miséria e pobreza. Para cada sulista aposentado a descansar no terraço de seu apartamento --voltado para o mar, é claro-- há muito barraco e relento. É a miséria exposta e gritante a ocupar vielas e atalhos de uma Fortaleza que é Terceiro Mundo. Mundo este no qual muitos pobres estão a serviço de poucos ricos.
Pois lá estava eu em Fortaleza. A Fortaleza do encanto e do desencanto. Do meu programa com a Visão Mundial fazia parte visitar um projeto que, apoiado por essa instituição, trabalha a nível de creche e escola. Entra em buraco, sai de buraco, lá vamos nós a caminho do tal projeto... até o carro estacionar. "É aqui, deste lado", me dizem, com a naturalidade de quem sabe onde está.
Os meus olhos, no entanto, voltam-se para o outro lado. Que cenário! Lá em baixo o azul do mar era puro fascínio. As ondas incansáveis, a quebrar nas grandes rochas, pareciam ter prazer neste constante vai-e-vem. A areia incontestavelmente branca parecia a noiva pronta a esperar o noivo-mar sempre a chegar. E, pasmem, até os surfistas, com seu insistente entra-e-sai mar adentro, somavam, nesta tarde, a formar um quadro de harmonia e ritmo, beleza e majestade. Ah, Fortaleza que encantas, como és bela! Intocável cartão postal a testemunhar o toque criador do Deus dos mares e das areias brancas. O Deus que dá aos surfistas uma estrada sem limite para brincar e deslizar.
A gente não podia se demorar. Afinal, o lado que estávamos indo nos esperava. Mas, quanto ao outro lado, eu já havia concluído: é muito bonito. Ou, como diria Calvino, THEATRUM GLORIAE DEI.
"É por aqui", orientaram-me. E lá fomos nós ao encontro dos que já nos esperavam naquele projeto que, como testemunho teimoso, estava incrustado em meio à miséria, violência e mau cheiro.
O cenário era puro desencanto. Aquela rua nada mais era do que um amontoado de buracos em cadeia. Os banheiros, a nos recepcionar naquela escola, fediam a dar dó. A comunidade, contaram-nos, era marcada pela prostituição. E as crianças (quantas crianças!) nos contavam a sua história na própria estrutura dos seus corpos e na placidez dos seus olhos. Olhos com a marca do desencanto.
E então nos contaram a história do menino que, aos seis anos, havia fugido de casa. E que, ao ser encontrado, protestou e não queria voltar para casa. Eu, como que perdido numa dor surda, não conseguia imaginar um dos meus meninos, com seis anos, saindo de casa e sobrevivendo numa selva de abandono, violência e dor. Mas eu certamente também nem conseguia imaginar o que aquele menino, de meros seis anos, já havia acumulado de desencanto na sua tão curta história.
Aquela foi uma tarde difícil para mim. A miséria, acumulada por metro quadrado, extrapolava qualquer medida mínima de dignidade humana. Este não era, definitivamente, o espaço e a vocação para o que se deu vida ao ser humano.
Mas, em meio àquela tarde difícil, havia sementes de esperança que teimavam em não murchar e tinham muito mais resistência do que o meu abatido coração. As crianças cantavam a plenos pulmões e expressavam alegria pela visita que recebiam. Um sinal, assim até parecia, de solidariedade bem-vinda. As professoras lutavam e resistiam em meio às dificuldades, que pareciam tantas. Apostavam nas crianças, investiam nas famílias e esperavam contra a esperança por mudanças na comunidade. E a igreja, que recebia no seu prédio a escola, dava testemunho de um compromisso de vida com a miséria humana e expressava um voto de confiança nas crianças.
Mesmo que a vontade de fugir e se esconder no outro lado fosse quase irresistível, eu sabia que o meu lugar, que o lugar da igreja é aqui mesmo, onde estava, com toda a sua miséria e desencanto. O lado da praia não pode ser esconderijo --mas é, certamente, modelo e inspiração. É modelo porque aponta para a criação de Deus e para o fato de que Deus criou o mundo com beleza e em harmonia. O outro lado dá testemunho da contínua presença de Deus na sua própria criação. Ademais, o lado paradisíaco permanece ali, paciente, a desafiar o lado onde estava a criar jeito na vida. E o Espírito a soprar parece querer dizer: "Arrepende-te e reconstrói a tua vida sob a inspiração de uma beleza e uma harmonia que dão testemunho de um Deus da graça, da beleza e da esperança". Tu, desencanto, dá lugar para o encanto!
De volta ao carro, os meus olhos percorrem rápido e, em tom de despedida, o lado da praia. O meu coração, no entanto, mais envelhecido, ficou no lado onde visitei. O meu corpo, mais pesado, cai no assento do carro. Os mundos parecem irreconciliavelmente distantes. E eu, impotente, quero ir embora. Há sinais, no entanto, que insistem em me acompanhar: as crianças que cantam, as professoras que resistem ao desânimo e a igreja que teima em permanecer como sinal de compromisso e esperança. E, não por último, há este outro lado, a me sussurar no ouvido que o incansável vai-e-vem das ondas dá testemunho do incansável apostar de Deus no arrependimento e na renovação da pessoa e da comunidade. E esta aposta é, em última análise, uma aposta de Deus em Deus mesmo. Uma aposta na graça. E, no final do dia, é esta aposta que me alivia o coração e me diz que é tempo de voltar para o lado onde visitei. Encanto! Encanto que nasce do desencanto.
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Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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