Quando a vida vale pouco!
A nossa família havia passado quatro anos fora do Brasil, num país onde é melhor não atropelar um pedestre. Pois, se isso acontecer e independente da razão que se tenha, não há como fugir de sérios problemas com a justiça. Afinal, uma pessoa atropelada é, em si, um motivo suficientemente sério.
Voltando ao Brasil, fomos a São Luís do Maranhão, visitar os pais da minha esposa Silêda. Todos estranhamos a loucura do trânsito. Aliás, naquela descida de ladeira, na periferia de São Luís, o tempo parecia haver parado. O asfalto esburacado, a ausência de acostamento e o louco e desenfreado ônibus pareciam os mesmos, apesar dos anos passados. E, lá vem outro ônibus... nossa, que velocidade!
Naquelas circunstâncias, não havia como evitar que, de tempos em tempos, alguém, atropelado, perdesse a vida. Aliás, a nossa conclusão óbvia e natural foi que havíamos voltado a um país onde a vida valia muito pouco.
Para falar a verdade, a bagatelização da vida parece ser, hoje, um fenômeno generalizado. Um processo em alta nesta louca década do neoliberalismo. A lei da descartabilidade e da exclusão parece ter sido levada não apenas ao universo da prática mas também ao nível do discurso. Hoje se fala da necessidade da exclusão e da impossibilidade da empregabilidade com o tom do “óbvio filosófico” e com uma descarada e assustadora naturalidade. O próprio presidente Fernando Henrique Cardoso fala no assunto sem ficar ruborizado de vergonha. Sem esconder o rosto. Como é possível viver numa sociedade em que não há lugar para todos, onde o outro (ou nós!) precisa ser excluído e onde nem todos podem almejar ter um emprego, sem que com isso a gente se torne um arauto da discriminação, da violência e da morte?
Parece que há, por todos os lados, sinais de que hoje a vida vale muito pouco. Lá longe, as guerras em Ruanda, Burundi e Zaire são assustadoramente cruéis. São tribais e por isso excludentes. Mas são também guerras sem fronteiras. Nada e ninguém é poupado. Seja a criança ou o idoso, a mulher grávida ou o ferido, todos são objetos da violência e vítimas da guerra. A todos se mata de qualquer jeito. Pode até ser com a enxada ou o machado que està a mão.
Não é preciso ir a África, no entanto, para perceber que a vida vale pouco. As imagens da atuação da Polícia Militar na Cidade de Deus, em São Paulo, ainda estão suficientemente frescas em nossa memória para que já tenhamos esquecido as cenas da extorsão, do espancamento despropositado e do assassinato frio que marcaram aquela incursão “policial”
Cidade de Deus? Ora...misericórdia!
Não seria muito difícil trazer à nossa memória ainda outras cenas e referências que apontam para o processo de brutalização desta nossa sociedade que perdeu o respeito pela vida. Afinal, quando jovens adolescentes resolvem brincar de assustar um outro ser humano ateando-lhe fogo ao corpo, como aconteceu com o indígena Galdino, da tribo Pataxó, em Brasília, então os tecidos sociais que apontam para a dignidade da vida e a sacralidade do ser humano já estão em ampla decomposição. Quando isso acontece, é que já mergulhamos profundamente no universo da morte. Já estamos exercitando o inferno e nem nos assustamos mais com isso. O gordo fantasma da morte se ri à toa do serviço gratuito que lhe prestamos, nesta nossa sociedade que parece ter perdido a própria capacidade de se indignar. A este fantasma, no entanto, os cristãos precisam reaprender a desmascarar.
A luta pela vida é sagrada!
No antigo e economicamente florescente Egito, o raciocínio político fazia do numeroso povo hebreu um alvo da exploração escrava. Afinal, o crescimento biológico do povo apontava para a possibilidade de um levante para a liberdade: “Eia, usemos de astúcia para com ele, para que não se multiplique, e seja o caso que, vindo guerra, ele se ajunte com os nossos inimigos, peleje contra nós e saia da terra” (Êxodo 1. 10), raciocinava Faraó.
Os mecanismos empregados para o controle político foram claros: (a) trabalho escravo na indústria civil; (b) extensivo controle da natalidade: “O rei do Egito ordenou às parteiras hebréias ...dizendo: Quando servirdes de parteira às hebréias, examinai: se for filho, matai-o; mas se for filha, que viva” (1.15-16). Como estes mecanismos não funcionaram a contento, e o povo continuava crescendo, o poder instituído fez o que tantas vezes se tem feito: endureceu a exploração e apertou o controle da natalidade. No caso dos filhos-recém nascidos às hebréias, qualquer pudor foi deixado de lado: “Então ordenou Faraó a todo o seu povo, dizendo: A todos os filhos que nascerem aos hebreus lançareis no Nilo, mas a todas as filhas deixareis viver”(1.22).
O povo hebreu, no entanto, se mostrou difícil de ser domesticado e controlado. Diz o texto que o povo, quanto mais era afligido, tanto mais se multiplicava (vide 1.12). E, quanto às parteiras, estas ironicamente se diziam sempre atrasadas: “É que as mulheres hebréias não são como as egípcias; são vigorosas, e antes que lhes chegue a parteira já deram à luz os seus filhos” (1.19).
O segredo das parteiras o Faraó egípcio não percebeu. É que elas, como registra o texto, “temeram a Deus, e por isso, desobedeceram ao rei e deixaram viver os meninos”(1.17). Quem teme a Deus preserva a vida, mesmo que isto implique na desobediência ao instituído poder da morte. O direito à vida está, pois, acima da obediência à autoridade civil ou militar, quando estas convocam para a morte.
Nestes nossos tempos da bagatelização da vida é necessário levantar um grito pela sacralização da vida. É preciso recuperar a dignidade da vida, nem que seja ironizando e/ou desobedecendo o império da morte, seja o da Cidade de Deus, do Diadema, do Carandiru, do Vigário Geral, do Eldorado dos Carajás...ou o do sistema da exclusão e da inempregabilidade.
A bandeira da vida é parte constitutiva da fé cristã. Quem não briga pela vida e denuncia a morte não pode ser cristão. Quem não preserva a vida não teme a Deus. Querer, pois, ser “Rambo” e ser evangélico é uma contradição de termos.
Rambo evangélico? Ora, tenha paciência!
Joquebede invade o limite da resistência
Joquebede não é um nome muito popular, é verdade. Mas este era o nome dessa mulher que poderia ser promovida ao status de símbolo da luta pela vida em pleno império da descartabilidade.
Ela é uma dessas grávidas hebréias que dá a luz um menino. É também uma daquelas mulheres que, como as outras hebréias, sabia muito bem que este seu filho recém-nascido deveria ser jogado ao Nilo para morrer. Assim o havia determinado Faraó e assim o executava sua polícia e os eventuais vizinhos. Mas, haja coração! Como é que uma mãe consegue executar uma ordem dessas?! E se esta mãe for temente a Deus... ai, que agonia!
Por três meses, então, Joquebede escondeu e protegeu o seu filho. Um sufoco! Era o menino começar a chorar para ela entrar em pânico. Ela não conseguia nem trabalhar nem descansar. O pior de tudo era quando o menino chorava de cólicas. Aliás, cólicas difíceis de serem evitadas, assim se poderia imaginar, uma vez que o leite materno havia secado de imediato, devido à tensão, e a adaptação a outro leite estava sendo difícil.
Joquebede emerge, pois, aos nossos olhos como uma heroína fragilizada. Uma quase-anônima heroína da resistência a desafiar o poder egípcio. Ela, por ela, no entanto, já não se aguenta mais em pé, de tão esgotada emocionalmente e fisicamente acabada. Ela nada mais é que uma mulher sustentada pelo seu temor a Deus, sua vocação para a maternidade e seu respeito pela vida... Até que a situação fica insustentável. Afinal, a partir dos três meses, como é que vai conseguir abafar o choro e o grito desse menino que quer protestar contra o seu isolamento e celebrar a sua vocação para a vida?
A rendição marcada pelo protesto
O temor a Deus pode ser também o princípio da criatividade. No limite da insuportabilidade Joquebede apela para a criatividade da sobrevivência. Uma sobrevivência extremamente arriscada e tênue.
A ordem de Faraó não era jogar os meninos recém-nascidos no Nilo? Não há momentos, na vida, em que parece não haver outra alternativa senão a rendição para a morte? Pois cada vez que Joquebede olhava para o Nilo ela via emergir dele o carrasco da morte. Em verdade, aquele mesmo rio Nilo, de fundamental importância para a vida do povo egípcio, se transformava de símbolo de vida em dragão da morte. Até que um dia Joquebede teve uma idéia. Uma sutil idéia que daria vazão a sua teimosa luta pela vida. Se o Faraó queria que o menino fosse parar no Nilo, ela assim o faria. Mas não para o afogamento. O menino no Nilo seria o seu grito de protesto e de esperança. O menino seria levado ao Nilo dentro de um cesto devidamente vedado: “Não podendo, porém, escondê-lo por mais tempo, tomou um cesto de junco, calafetou-o com betume e piche, e, pondo nele o menino, largou-o no carriçal à beira do rio. Sua irmã ficou de longe, para observar o que lhe haveria de suceder” (2.3-4).
O resto da história é conhecida. O menino, no cesto, é encontrado por uma das filhas de Faraó. Esta, sensibilizada, acaba entregando o menino, de forma incógnita, aos cuidados da própria mãe. Esta, além de ter o menino de volta, pode também educá-lo segundo as suas tradições, preceitos e temores. E, numa ironia subversiva, ainda ganha pago por isso: “Então lhe disse a filha de Faraó: Leva este menino, e cria-mo; pagar-te-ei o teu salário. A mulher tomou o menino e o criou” (2.9). E o seu nome foi Moisés, “porque das águas o tirei”(2.10). E Moisés se tornou numa das mais expressivas lideranças de todo o povo de Israel. Aliás, por ironia de Deus, ele passaria a ser o agente chave da libertação do próprio povo de Israel da escravidão do Egito. E Joquebede era o nome de sua mãe.
A providência como ironia e esperança
Joquebede resistiu até onde pôde. E continuou a resistir quando já não podia fazê-lo. A sua esperança se transformou em resistência e a sua resistência em esperança. Uma Resistência e uma esperança banhadas no temor a Deus, o único que dá a vida e tem o direito de tirá-la. É por isso que se diz que a vida é sagrada. Ela pertence a Deus. É por esta resistência e por esta sacralidade da vida que estou protestando, em nome de Jesus. Não é possível conformar-se, nem com a morte violenta, barata e inexplicável do Galdino, nem com esta exclusão sistêmica dos mais fracos e mais pobres. A fé que protesta pela vida é a mesma que busca por espaço de dignidade numa sociedade que já perdeu a vegonha e o respeito. Os recursos e possibilidades que o Deus criador colocou à disposição da humanidade têm, assim como o Nilo, a vocação de promover a vida. Mas quando os nilos se transformam em berços de morte de crianças, então a idolatria quer reinar e a injustiça ditar as anormais normas. Mas então é hora de gestarmos o nosso protesto do cesto da esperança. Portanto, a hora é chegada. E viva a providência!
Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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