Mas qual é a nossa verdadeira casa?
O quarto do hotel é simples, mas suficiente. Nele eu busco um canto para poder escrever algumas linhas que podem estar se constituindo, neste momento, num exercício terapêutico.
É que estou convivendo com aquela sensação de inadequação que a gente experimenta quando as coisas não dão certo. Ao chegar ao aeroporto desta cidade mexicana chamada Aguascalientes, me informaram que o vôo para Ciudad de México havia sido cancelado. Em consequência, perdi o vôo de volta ao Brasil. Mas tudo deve se resolver em um dia, quando espero que o vôo parta. Só que isso ainda pode não resolver tudo: é que no vôo para o Brasil eu estou em lista de espera... Nada muito especial, mas um fator complicador. Coisas de viajante.
Eu sei que isso pode acontecer e que os contratempos fazem parte da vida. Mas o fato é que eu planejava ir embora. E aqui eu me sinto fora de casa, com saudade de casa. E, na distância, cresce a importância e fundamentalidade da esposa e dos filhos.
Viajando para cá e para lá, para “aguascalientes” e águas frias, eu percebo quão importante é a nossa casa – aquele lugar para onde é possível voltar e onde a gente se sente esperado e acolhido. A casa que a gente valoriza tanto quando está longe dela ou quando alguém não a tem. É muito bom, pois, saber que temos uma casa, local de segurança e acolhimento.
Vivemos buscando uma casa
Um dos pais da igreja, Agostinho de Hipona, disse que”no princípio criou Deus a pessoa humana e lhe deu um coração que está inquieto até que encontre a paz em Deus”. A nossa alma precisa de uma casa. O nosso ser palpita por acolhimento. E este só é encontrável na carinhosa mão de Deus; mãos em forma de concha acolhedora.
Eu penso na minha própria vida. Hoje eu tenho cinquenta anos. Os cabelos brancos assinam o seu ponto de chegada, as visitas ao médico se tornam mais frequentes, o exercício físico se torna mais lento e a realidade da limitação e da finitude ameaça invadir o nosso cotidiano. E uma mistura de insegurança e saudade começa a querer nos fazer companhia.
O fato de ter vivido uma vida cristã por tantos anos não me isenta da tentação de querer abraçar possuidoramente a minha própria casa. Nem tenho eu menos necessidade de que Deus me aponte constantemente a sua casa. O fato é que eu tendo a olhar para trás, querendo ficar com a minha casa e temendo a transição da minha para a casa de Deus. E, carente, eu necessito que Deus me segure pela mão, nessa transição para o seu aconchego.
Este artigo não tem nenhuma intenção de despedida. O que eu quero é destacar a necessidade que temos de ter uma casa e de sentir-nos em casa. De experimentar acolhimento e de ser recebidos nos portais de transição que cruzamos.
Buscando um significado permanente na vida
Anos atrás, eu me alimentei muito de um livrinho de Hans Bürki intitulado A Busca Humana por um Significado Permanente na Vida, em que o autor afirma que todos nós carecemos de um significado permanente na vida. E, enquanto não o encontramos, convivemos com os significados parciais, em uma constante busca e rebusca daquilo que é permanente.
Eu percebo essa busca e a respectiva parcialidade dos significados se tornando mais frenética nos dias de hoje. Construímos, abandonamos e reconstruímos “casas”, relações e significados, com uma rapidez nunca vista, uma insaciabilidade terrível e com muito medo. Medo da ausência de casa e do frio da solidão.
As relações que se constroem parecem extremamente frágeis e as pessoas correm de um braço para outro em busca de um abraço. As famílias já começam sob o marco da possibilidade de desconstrução e os corações não conseguem se entregar sem medo. A cotidianeidade da vida parece invadida pela insuportabilidade da monotonia. Espaço onde as experiências de fronteira parecem estranhamente apetitosas. E, na insaciabilidade vivencial, estas se tornam cada vez mais intensas e dependentes, o que vai de uma religiosidade zen à droga mais forte. E os significados parciais vão se acumulando neste “ferro velho” da humanidade, juntamente com as nossas olheiras.
E o filho pródigo nos ensina o caminho
É comovedor perceber a forma profunda como o Evangelho parece mergulhar nas entranhas de cada geração... e se comunicar com ela de forma significativa. E Jesus tem uma capacidade enorme de falar com as pessoas no decorrer da história sem deixar de ser relevante e relacional. Ele sabe da necessidade de acolhimento vivida pela nossa geração. E assim ele contou aos seus conterrâneos uma parábola que continua se repetindo nos dias de hoje.
A parábola do filho pródigo tem tido essa virtude de calar fundo nos ouvidos de cada época. E ao final ela nos desenha a figura de um pai acolhedor, que nunca desiste de esperar por seus filhos. E uma casa em festa surge no horizonte da solidão. Vale a pena ler de novo:
Certo homem tinha dois filhos; o mais moço deles disse ao pai: Pai dá-me a parte que me cabe dos bens. E ele lhes repartiu os haveres. Passados não muitos dias, o filho mais moço, ajuntando tudo o que era seu, partiu para uma terra distante, e lá dissipou todos os seus bens, vivendo dissolutamente. Depois de ter consumido tudo, sobreveio àquele país uma grande fome, e ele começou a passar necessidade. Então ele foi e se agregou a um dos cidadãos daquela terra, e este o mandou para os seus campos a guardar porcos. Ali desejava ele fartar-se das alfarrobas que os porcos comiam; mas ninguém lhe dava nada. Então, caindo em si, disse: Quantos trabalhadores de meu pai têm pão com fartura e eu aqui morro de fome! Levantar-me-ei e irei ter com meu pai e lhe direi: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus trabalhadores. E, levantando-se, foi seu pai. Vinha ele ainda longe, quando seu pai o avistou e, compadecido dele, correndo, o abraçou e beijou. E o filho lhe disse: Pai, pequei contra o céu e diante de ti; já não sou digno de ser chamado teu filho. O pai, porém, disse aos seus servos: Trazei depressa a melhor roupa; vesti-o, ponde-lhe um anel no dedo e sandálias nos pés; trazei também e matai o novilho cevado. Comamos e regozijemo-nos, porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. E começaram a regozijar-se. (Lc 15. 11-24)
É preciso ouvir a parábola com silêncio e reverência. Oferecendo espaço para ouvir. E para sentir-se acolhido.
Esta palavra de Jesus em forma de parábola fala a essa geração mordida pelo vírus de uma insaciabilidade que não produz colheita. E desenha diante dos nossos olhos um cenário de inquietação que, em busca de novos caminhos, acaba sempre adentrando de novo os becos sem saída. Uma jornada romanticamente descrita, mas tragicamente linda. E no final restam as alfarrobas como prato na mesa e os porcos como companhia de vida. E a SAUDADE. Saudade da casa do pai, saudade que se constitui em embrião de esperança.
Encontrar os porcos não é mero julgamento. É realidade. É descrição de um caminho de vida que se percebe num beco sem saída. É olhar no espelho da auto-opção. Mas é também ver nesse mesmo espelho o caminho da saudade... que se transforma em esperança.
E assim o filho pródigo decide voltar para a casa de onde havia saído. E na proximidade dessa casa vislumbra a figura do pai – que, inesperadamente, lhe dá uma acolhida imerecida, um beijo, um anel e uma festa. E a parábola nos convida a reencontrar a Deus, a nossa casa e a nós mesmos.
Esta é, portanto, uma parábola para a nossa geração, marcada por esse passo rápido do desencontro dos sem-casa.
Jesus foi lá... preparar a nossa casa
A véspera da crucificação de Jesus não foi um tempo fácil. Nem para o próprio Jesus, nem para os seus discípulos. A conversa de despedida, conforme os capítulos 14 a 17 do Evangelho de João, refletem a tensão e a intimidade do momento. Os discípulos sentem-se antecipadamente órfãos, e não conseguem esconder a sua inconformidade e insegurança. Jesus, por sua vez, procura confortá-los. Mas também não consegue esconder que se sente profundamente ligado a esse grupo e ao mesmo tempo abandonado por ele. Jesus terá de seguir o seu caminho, e tem de fazê-lo mergulhado no abandono.
Na agonia desta conflitiva vivência da saudade e do abandono ele vislumbra a mão do Pai que ele sabe estar com ele: “...contudo não estou só, porque o Pai está comigo”(Jo 16. 32b). E a presença do Pai lhe dá ânimo e rumo para seguir em frente. Passar pelo Calvário, convidar os discípulos a passarem pelo seu calvário -- “no mundo passais por aflições” (16. 37) -- e anunciar-lhes tanto a sua persistente vitória como a paz no conflito e a casa eterna. E de uma profunda comunhão de alma nascem as palavras de Jesus:
Não se turbe o vosso coração; credes em Deus, crede também em mim. Na casa de meu Pai há muitas moradas. Se assim não fora, eu vo-lo teria dito. Pois vou preparar-vos lugar. E quando eu for, e vos preparar lugar, voltarei e vos receberei para mim mesmo, para que onde eu estou estejais vós também. E vós sabeis o caminho para onde eu vou. (Jo 14.1- 4)
Os discípulos andaram por diferentes rincões nas suas caminhadas missionárias. Pedro, por exemplo, viveu na Galiléia por um tempo, mas deve ter morrido em Roma. Mas o lugar não importa, porque Pedro sabia que caminhava na esperança de uma nova casa. Casa preparada por Jesus.
Eu, por enquanto, moro em Curitiba, e estou aqui pensando em como avisar a minha família sobre o meu atraso. Amanhã eu vou ao aeroporto na esperança de que o vôo saia no horário e as conexões funcionem. E isso é importante, mas não deixa de ser provisório. Coisas de significado passageiro. Coisas que não substituem nem a sede nem a realidade do eterno. No horizonte da vida, pois, o que dá significado real e verdadeiro é a casa do Pai, na qual se entra abraçado por ele. Casa de acolhimento a ser vislumbrada por uma geração que se sente tão inadequada. Convite de vida a brotar da boca de um filho que ontem foi pródigo e hoje não consegue deixar de esfregar as mãos de contentamento. Um filho a nos dizer que o lugar já está preparado. É muito bom chegar em casa, não é verdade? A porta está aberta.
Publicado originalmente na Revista Ultimato.
コメント