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Eu quero falar sobre política indignado

Foto do escritor: Valdir SteuernagelValdir Steuernagel
O mar não está para peixe!

É sempre difícil escrever essa coluna para a Ultimato. Há um forte interesse, afinal, em escrever acerca das “coisas importantes da vida”, coisas do presente. Essas coisas no entanto podem ser passageiras. E esta coluna não vai ser lida “depois de amanhã” quando o assunto ou a crise já pode ser outra.


Essa coluna, por exemplo, está sendo escrita numa espécie de ressaca. A ressaca da crise. Eu voltei de férias, nesse início de ano, e me embrenhei em alguma leitura que me desse alguma compreensão dessa “Crise do Real” que estamos vivendo e afeta a todos nós. O dólar está livre e nós presos na ressaca do Real sem saber ao certo o que vai acontecer amanhã. O dinheiro está curto e caro, o emprego está ralo, a liderança política é fraca e o Congresso parece um pandemônio.


Ontem pela manhã, no dia de Domingo, fui à igreja participar do culto dominical. A palavra crise parecia estar ausente e o assunto do sermão era outro. Mas havia uma coisa dentro de mim que pedia para ser ajudado a pensar e viver nessa crise. Uma leitura bíblica do nosso contexto. Uma palavra do Senhor para hoje. Para mim. Mas quanto a isso eu encontrei o silêncio.


Saindo do culto eu fui pegar o jornal do dia para tomar contato com as coisas que estavam acontecendo por aí e ler algumas das interpretações do nosso momento. O jornal falava dessas coisas de hoje acerca das quais a igreja silenciava.


A tradição da ausência:

Há uma parte de nós que não quer nem saber, nem ouvir falar da crise que vivemos. E falar dela na igreja, então, nem pensar. A vida parece já estar tão difícil, que a gente quer que a igreja “traga um pouco de ânimo” para a nossa vida. E então a nossa vivência cristã se torna numa mera experiência religiosa. Coisas da alma e do sentimento para nos fazer sentir bem. “Pão e circo”, como diziam os antigos gregos.


Há, também, em muitas de nossas igrejas uma sublimar tradição da submissão. A igreja e os cristãos, nessa percepção, carecem de ser submissos às autoridades no exercício do poder porque elas são instituídos por Deus e são benignos quando permitem a nossa existência e o nosso culto. Cabe a nós, portanto, calados fazer o nosso serviço.

Essa tradição da ausência, marcada pela nossa leitura da fé separada da realidade e nosso sentimento de indiferença, que é um sinal desse nosso tempo, acaba gerando uma grande pobreza de vida e uma fraca contribuição na construção de uma sociedade justa e bonita.


Bebendo água fresca:

É importante recuperar a especialidade da relação da fé cristã com o tempo no qual se vive. Por um lado, nós somos afetados e refletimos a cultura de crise e da indiferença que se vive por todos os lados. Os cristãos, afinal, também perdem seus empregos, precisam pagar as suas contas e mandar seus filhos à escola.


Mas a fé cristã também respira o ar da eternidade. Bebe água de uma outra fonte. Água da fonte da água viva. Despoluída. Transparente.


Enquanto se vive a tentação da adaptação ao tempo é preciso resgatar a veia do protesto e da novidade que vem de Deus.


É interessante observar no decorrer da história da igreja, que é nos tempos de crise que, muitas vezes, a igreja se sabia alimentada e cuidada por Deus. E é neste contexto, que a sua contribuição de esperança cresce, e pode se tornar visível na própria sociedade.


Vivendo entre os pólos: a criação e a eternidade

Viver no mero tempo cronológico é mito pobre. Sonhando com dias melhores parecemos ser levados pelo vento da crise sempre novamente. O forte Real de ontem parece ter se tornado no fraco Real de hoje.


Vivendo a fé cristã se belisca o tempo de outra forma. Se poderia dizer também que a fé cristã se vive em meio a referências. De forma bem ampla se poderia dizer que o jogo da vida se delineia entre dos pólos: a criação e a eternidade.


Afirmando a Deus como criador se percebe que a qualidade e os valores de vida que Deus plantou na sua criação tem a própria marca de Deus. Deus quer para a sua criação um vislumbre daquilo que ele é para si mesmo. É olhando, pois, no espelho da criação que nós percebemos o que Deus deseja para toda a sua criação. Seja para as pessoas, suas convivências e a própria sociedade; seja a natureza, os seus recursos e a sua sobrevivência. O relato da criação de Deus, conforme o registro em Gênesis é, portanto, um paradigma para a vida em sociedade hoje. Hoje, pois, é tempo de reler Gênesis.


Mas ao mesmo tempo a fé cristã se inspira no amanhã. Ela é escatológica. Ela se inspira hoje nesta eternidade onde fluirá a justiça. O amanhã eterno é objeto da nossa esperança hoje:

“Nós, porém, segundo a sua promessa, esperamos novos céus e nova terra, nos quais habita justiça” (2 Pe.3.13)

E assim nós vivemos: ora gemendo sob o peso do nosso tempo e buscando um jeito de pagar a conta e ora deixando-nos suprir pelo eterno Deus da criação e da esperança. É por esse recurso e essa possibilidade que é tão bom ser cristão. Nunca presos e limitados ao nosso tempo; seus diagnósticos e seus recursos.


É esse ar de eternidade que se transforma no combustível do nosso testemunho: pessoal e coletivo. Em meio, portanto, à crise do momento a igreja vive e fala da fonte da esperança, de um sistema de valores e de um jeito de viver.


Olhando os postes de iluminação

Caminhando à noite na praia, num dia desses, durante as férias, eu parei diante dos holofotes que iluminavam um pedaço do mar e do costão. Uma visão fantástica!


Na caminhada da vida Deus coloca alguns holofotes que descortinam o cenário, indicam o caminho e mostram possibilidades. Hoje, quando o caminho parece tão escuro e as possibilidades tão remotamente apalpadas eu gostaria de apontar para três holofotes fundamentais:


Sendo encontradas por Deus na viração do dia.

O relato da criação fala de um Deus que vai ao encontro da sua criação. Na “viração do dia”(Gn 3.8). Uma imagem fantástica de amor e proximidade. Deus quer a comunhão com as pessoas e as pessoas por ele criadas. É desse encontro que nasce a seiva para a vida e a relação da construção da sociedade. O homem e a mulher crescem no relacionamento mútuo e no gerenciamento da natureza a medida que caminham com Deus na viração do dia. E vice-versa.

É preciso afirmar hoje a possibilidade e a riqueza de um encontro com Deus sem o qual se instala um outro império, a solidão e o reganhamento mútuo do tipo “a mulher que me destes”. (Gn. 3.12)


A adoração a Deus, em outras palavras, é um fator essencial para a qualidade de vida que todos almejam ter. Sem ela o que resta é o silêncio da ausência; da transcendência, da esperança, do amigo, e do próprio ar. Este é o holofote da revelação que aponta para o outro, para a qualidade de vida e a própria eternidade.


A construção comum da sociedade.

Já tantas vezes se tem dito que o homem e a mulher são seres sociais; criados para viverem juntos e na relação uns com os outros.


A construção da sociedade é o mero fruto de convivência das pessoas entre si. Agora, a forma como essa sociedade é construída tem relação com a forma como se entende a própria vida e o outro. Portanto, a construção das sociedades nunca é neutra.


A fé cristã diz que a construção da sociedade é um ato de santidade na medida que a vida é sacra e o outro é digno. Na medida em que tudo e todos vem de Deus e pertence a Deus.


É a partir dessa realidade que a fé cristã afirma o exercício da justiça, onde o outro é levado em conta, e a prática de uma cidadania, onde se quer para o outro aquilo que se quer para si e para os seus. A cidadania de inclusividade e a prática de justiça são portanto, os nossos holofotes nesta caminhada da convivência humana., sob o critério de Deus.


O meio ambiente também é sagrado.

Nós geralmente pensamos na natureza como um recurso para a nossa sobrevivência, o que não deixa de ser uma verdade parcial. Mas, hoje sabemos também que a natureza precisa ser preservada se a própria vida quer ser preservada.


Todo o meio ambiente, afinal, é criação de Deus. Parte do enorme palco que encena a criação de Deus.


A fé cristã afirma a natureza criada do meio ambiente e dessa convicção extrai o holofote de uma ecologia santa que reconhece na criação a mão de Deus o - recurso essencial para a sobrevivência de toda raça humana.


Escrever esse artigo quer ser uma conversa onde eu lembro e sou lembrado de algumas coisas básicas da vida; seja o gerenciamento atual seja a invocação da esperança eterna. Estar afirmando crenças e valores que me ajudam a afinar um hino de adoração a Deus, procurar ficar em pé hoje, protestar contra essa indiferente e irresponsável prática político-econômica das nossas autoridades e afirmar que há holofotes que podem e devem iluminar o caminho da vida e da própria prática política.


Intercedendo de olhos abertos

Um dos enunciados enigmáticos da fé cristã é a interpretação entre a justiça e a compaixão. Ou seja, o fato de Deus ser justiça e amor em complementaridade um ao outro. A justiça expressa um compromisso radical com a verdade e com o outro, especialmente o oprimido e a vítima. O amor abraça o pecador e inclui o separado. E, na conversa entre a justiça e o amor Deus não se torna nem rígido nem barato, mas sorri com integridade e abraça com firmeza. E é assim que ele quer ver a igreja andando.


Nesse contexto, portanto, nós devemos buscar a justiça e praticar o amor. Isso significa que nós queremos uma prática política marcada pela verdade, um gerenciamento da coisa pública em função do pequeno, um exercício de autoridade marcado pela transparência.


Ao mesmo tempo, nós devemos buscar o nosso espaço de serviço, procurar o bem-estar do outro antes do nosso e cultivar uma relação de misericórdia firme aos que percebemos de costas voltadas para a justiça e o para o pequeno.


O lugar onde a justiça e o amor se encontram é na oração. É lá onde podemos expressar a nossa indignação quanto ao presente estado das coisas. É lá onde podemos chorar pela justiça, nossa e dos outros. É lá onde vemos nossa raiva no espelho. Mas é lá também onde balbuciamos uma atitude de serviço e uma intercessão por nossas autoridades.


A oração, afinal, é até o espaço da nossa incoerência e da suficiência de Deus. É o lugar da nossa ira quixotesca e o reconhecimento da misericórdia de Deus. É na oração que lembramos a Deus da sua justiça e nos jogamos nos braços dele. É lá que clamamos por emprego para o desempregado e saúde para o enfermo. Família para o solitário e casa para o abandonado. Leite para o faminto e cobertor para o frio. A oração é, pois, o lugar do cultivo da esperança. Esperança em Deus em meio a desesperança humana. Trampolim para a vida marcada pelo serviço.


O povo de Deus, portanto, tem a virtude e a possibilidade de orar de olhos abertos. Vendo o que acontece, procurando viver a justiça e o amor, ocupando espaços de serviço, proclamando a justiça e intercedendo por “toda as pessoas e todas as coisas”. Essa é a nossa prática política


 

Publicado originalmente na Revista Ultimato.

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