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  • Foto do escritorValdir Steuernagel

Impossíveis histórias de vida

Os caminhos de Deus vão além da miséria humana


Foto: Nick Ut


Que tempos são esses?

Às vezes eu saio a caminhar com um amigo meu. Passos vão, passos vêm, há uma expressão que ele sempre diz novamente: “Tempos difíceis, esses que vivemos!” É que nessa caminhada a gente fala das coisas da vida: de nós mesmos, da família e dos amigos. E, não raro, acaba-se chegando a alguma encruzilhada da perplexidade.


A verdade é que tanto você como eu temos dificuldade de processar o nosso tempo e os nossos dias. Depois de colocar os assuntos do dia no processador da vida, continuamos tendo em mãos duros pedaços, renitentes ao processamento. Os jovens que não sonham além do consumo, a empregabilidade que se constitui num pesadelo para tantos, a violência que não pára de crescer, o individualismo que insiste em expandir-se, os relacionamentos que teimam em não se constituir, as famílias que não param de se dividir e um governo que no seu desencontro povoa o espaço com uma qualidade de ar que nos produz tanto mal-estar. E, cansados, suspiramos: “Tempos difíceis, esses!”


O sinal está verde?

Poucas vezes eu me vi tão consciente de que eu vivo nestes dias. Sou filho do nosso tempo. O cristão não pode deixar de viver e experimentar o contexto de vida, como todos, sem exceção e opção, o fazem. Ele não está acima dos conflitos e das perplexidades. Ele também é assaltado e fica doente. Vive o desemprego e as crises. Enfrenta dificuldade na família e sofre o impacto de um estado mal governado. (Ou os cristãos não pagam CPMF?)


Vivendo num outro contexto e experimentando a dificuldade da sua vocação, o apóstolo Paulo trabalhou esta relação entre a dificuldade e a esperança. Ele diz:

Em tudo somos atribulados, porém não angustiados; perplexos, porém não desanimados; perseguidos, porém não desamparados, abatidos, porém não destruídos. (2 Co 4.8-9)

Ou seja, o cristão vive no tempo, mas não pode entregar os pontos. Ele resiste. Sabe-se parte do contexto, vivendo as agruras da situação. Mas a elas ele não se rende. Contra elas ele protesta. Busca caminhos de vida e esperança.


Olhando, pois, a minha vida eu percebo e sinto as dificuldades da época que vivemos Mas ao mesmo tempo, eu preciso e quero dizer que Deus tem sido extremamente bondoso. O pedaço de pão sobre a mesa e a xícara de café com leite não tem faltado. A conversa com os meninos em torno da mesa e o carinho da esposa me têm animado. O abraço dos irmãos e irmãs na fé e a confirmação do caminho da vocação tem me sustentado. A confirmação do ministério e o alimento substancial que vem pela Palavra de Deus é algo que não posso abrir mão. A presença dos sonhos na quietude e os milagrosos sinais do cuidado de Deus evidenciam o amor e do carinho de Deus.


O momento da nossa vida, as nossas experiências cotidianas e os sinais de decomposição que nos cercam podem testificar que vivemos em tempos difíceis. Mas a graça de Deus, que brota como uma flor no deserto, é sinal não apenas da misericórdia de Deus, mas da possibilidade de se viver e compartilhar dessa misericórdia de Deus nos nossos dias e na nossa sociedade.


O apóstolo Paulo testemunha que a luz resplandece nas trevas e isso faz a diferença:

Porque Deus que disse: Das trevas resplandecerá luz - ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo.” (2 Co 4.6)

Não se esqueça de olhar. O sinal está verde.


O que quero resgatar hoje é essa misericórdia de Deus que parece fazer de ingredientes tão sem graça um prato tão bonito! Em palavras de Paulo, Deus enobrece o vaso ao colocar nele os seus tesouros (vide 2 Co 4.7). E quanto mais impossível isso parece, tanto mais a sua glória resplandece e tanto mais o sinal parece estar verde. Sinal de Deus. Recentemente eu encontrei duas pessoas que, ao meu coração, foram sinais vivos dessa incrível graça de Deus. De fato, eu não podia deixar de murmurar: “Só Deus faz isso!”


Olha só a Kim! Ela está sorrindo!

É claro que eu não a reconheci. Isso, afinal, seria impossível. Até porque eu não a conhecia, e tudo que eu havia visto era uma fotografia dela, ainda menina. Mas o sorriso estampado no seu rosto dava testemunho de uma profunda transformação de vida.


Foi assim que eu a conheci: sorridente e falante em torno da mesa de jantar, às margens das Cataratas do Niágara, em pleno Canadá. Com muita liberdade ela falava da sua história, da qual eu saberia um pouco mais ao ouvir seu testemunho de vida na conferência à noite.


Muitos de vocês hão de lembrar-se da história, expressa numa fotografia tirada na guerra do Vietnã: uma menina de nove anos de idade, correndo despida, consegue sair viva das bombas de Nepal, incendiárias por natureza, que os americanos jogaram sobre civis. Uma cena terrível e trágica que ganhou o mundo ao ser captada por um fotógrafo.


Enquanto corria, contou-nos Kim, ela arrancava a roupa em chamas. E, queimada, foi levada ao hospital pelo fotógrafo. E foi ali, internada no setor do hospital que acolhia os desenganados, que seus pais a encontraram. As suas dores eram intensas, ela testemunha. E quando se tornavam insuportáveis, ela desmaiava.


Mas ela sobreviveu, mesmo que as dores tenham sido enormes e o custo extremamente alto. Catorze meses e dezessete cirurgias depois, ela saiu do hospital. As marcas físicas e emocionais, no entanto, a acompanharam na saída e nos difíceis dias que se seguiram. E, desfigurada para sempre, ela chorava.


Foi nesse contexto de vulnerabilidade e crise que, levada a uma igreja, ela aceitou o chamado de Deus. “Com o coração quebrantado eu respondi ao convite”, ela testemunhou, “e recebi o Senhor Jesus.”


Vivendo hoje no Canadá e tendo percorrido vários caminhos, eu olhava para ela e pensava: “Só Deus pode fazer isso!” E foi isso mesmo que ela disse.


Nomeada embaixadora da Unesco, ela tem tido a oportunidade de contar a sua história em muitos lugares, e convocar a muitos para a paz. Sonhando com a paz, ela diz que não pode mudar o passado, mas pode ajudar a buscar a paz no presente. E foi nessa perseguição que um dia ela se viu face a face com um homem que esteve envolvido na precipitação daquelas bombas, e pôde estender-lhe o perdão. “Deus me preparou para esse encontro”, ela disse, “e eu pude lhe dizer que o perdoava.” Um perdão divino, porque humanamente impossível.


A hora avançava, começava a fazer-se tarde e ela precisava terminar seu testemunho. Mas a forma como o fez me impactou. Uma vez mais, envolvendo o esposo, presente no jantar, e olhando para o futuro, ela se dispôs nas mãos de Deus. E visualizando o caminho missionário ela diz:

“O nosso futuro é o compromisso com o Senhor”.

E nós, aplaudindo, respeitamos a sua história, demos glória a Deus e reverenciamos a sua disposição para servir a Deus em missão e convocar o mundo para a paz.


Uma trágica e bonita história a dar testemunho da beleza e da profundidade da redenção de Deus. Os tempos são difíceis, sim, mas os caminhos de Deus vão além da miséria humana.


Conheça Jean-Baptiste e aposte na reconciliação

Encontrando gente aqui e ali e tendo oportunidade de conversar com um e com outro a gente vai aprendendo algumas coisas. Hoje se aperta a mão de alguma autoridade e amanhã se saúda um pobre pai de família. É nessa jornada, pois, que aprendi a reverenciar não tanto ao que vai longe, mas ao que vai fundo. Ao que experimenta a miséria e a dor de formas indescritíveis e, no final do dia, de pé procura encarar a vida.


É por isso que, em reverência, eu saúdo Jean-Baptiste, um sobrevivente da chacina de Ruanda que se transformou num apóstolo da reconciliação.


As razões históricas, culturais e sociológicas que levaram à chacina de um milhão de pessoas na Ruanda podem ser muitas. Mas o fenômeno continua inexplicável. E quando me dizem que 80% do país eram cristãos e que membros da mesma igreja se mataram, eu baixo os olhos, pasmo!


E assim conheci Jean-Baptiste, um homem marcado pela matança em Ruanda. Depois de 1994 nunca mais a sua vida foi a mesma. Ele não era apenas um engenheiro bem-sucedido que, tendo que se exilar no Congo, perdeu tudo o que tinha. Era também um sobrevivente a enfrentar, como ele diz, a dificuldade da sobrevivência.


Vindo de uma família de doze irmãos, vários deles casados, eles compunham ao todo uma família de umas sessenta pessoas. Com exceção de três sobrinhas, no entanto, todos foram mortos. Em 1994, ao ver a mãe ser morta -- em suas palavras, “por alguém que considerávamos irmão” -- ele achou que a vida acabara. “A esperança e a dignidade se perderam”, disse ele. Ficaram as cinzas, a dor, a desesperança e as três sobrinhas com os quais ele vive agora.


É por ele não ter enlouquecido que silencio diante dele. É pela sua disposição de chacoalhar as cinzas e teimar em caminhar que eu o respeito. É pela sua fé que o reverencio. A fé que lhe permite sobreviver. E, como ele diz, só pôde sobreviver por sua esperança em Cristo e sua aposta na reconciliação.


Agora pastor no Norte de Ruanda, Jean-Baptiste tornou-se um promotor de seminários de reconciliação, num país marcado pelo horror, ódio e feridas. Reconciliação num país onde os remanescentes têm abundantes traumas e os sinais de miséria estão por todo lado. Um país onde mutilados e mulheres estupradas são inúmeros. Onde os pesadelos invadem as noites de muitas crianças e viúvas perambulam de mãos vazias. Onde as prisões estão lotadas, a superpopulação continua e a economia está aos pedaços. Onde a desconfiança mútua se alastra, o ódio é abundante e as feridas literais e emocionais são incontáveis. É nesse ambiente que Jean-Baptiste se envolve na organização de seminários de reconciliação, onde as pessoas podem entrar em contato com sua dor, juntar cacos da sua história, experimentar níveis de reconciliação e buscar a sua paz.


Com lágrimas nos olhos, cumprimento Baptiste em silêncio. Um amigo mútuo olha para mim e sussurra: “Não tem sido fácil!”, com o que o meu coração concorda. Mas com um nó na garganta eu murmuro para mim mesmo: “Só Deus pode fazer isso!” São impossíveis histórias de vida a testemunhar que os caminhos de Deus vão além da miséria humana.


“Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o Senhor, o criador dos fins da terra, nem se cansa nem se fatiga? Não se pode esquadrinhar o seu entendimento. Faz forte ao cansado, e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços de exaustos caem, mas os que esperam no Senhor renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam.” (Is 40. 28-31)
 

Publicado originalmente na Revista Ultimato.

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