Da boca de pequeninos e crianças de peito
tiraste perfeito louvor. (Mt 21.16)
O destino nem era tão longe, mas o problema era chegar lá. Eu estava em Porto Príncipe, capital do Haiti, e precisávamos ir a Cap-Haitian, uma cidade de 100.000 habitantes, no norte do país, a menos de duzentos quilômetros dali.
Então, a gente diria, é só pegar a estrada, e em menos de três horas se está lá! Mas a realidade não é assim, neste país pequeno e com uma infra-estrutura pobre e destruída, onde os duzentos quilômetros de estrada submetem o viajante a umas sete horas de viagem, num desgastante “segura e larga” por um interminável desfile de buracos.
“O problema não é bem a estrada”, explica a pessoa que me acompanha num rápido vôo regional. “Não vamos por terra por questão de segurança. É que nestas últimas semanas tem havido uma série de distúrbios e conflitos no país; e o norte é bastante instável, estando em estado de levante quanto ao regime que hoje ocupa o poder.”
O Haiti é assim: um país marcado por profundos desencontros históricos e políticos. Tendo conquistado a sua independência através de uma revolta de escravos, o país foi “gelado” pelos grandes, como os Estados Unidos e a França, de quem havia proclamado a independência. Mas internamente a coisa também não foi bem e nos últimos dias a situação está novamente instável e caótica. O presidente Aristide, que chegou ao poder cercado de enorme expectativa popular e progressista, transformou-se em uma grande decepção e agora se agarra ao poder como um desesperado. Assim, uma vez mais, a tristeza, a angústia, a decepção e a revolta imperam ali.
Como se mede a pobreza?
Há várias formas de se concluir que um lugar é pobre. Mas aqui, basta olhar ao redor: as pessoas não têm o que comer, nem onde morar, e vestir é uma ginástica. Em caso de doença, não há médico disponível e quando se consegue uma receita, não há dinheiro para comprar o remédio.
Esse quadro é geralmente marcado por um acentuado crescimento demográfico e uma economia estagnada. Dito de outra forma, as mães têm muitos filhos, mas não há escola suficiente para as crianças. Os jovens entram no mercado de trabalho, mas encontrar emprego é coisa rara. Em números oficiais, se diz que o Haiti tem um índice de desemprego de 65% e um índice de analfabetismo de 40%. Das crianças em idade escolar só 65% estão na escola. Como se vê, o quadro que se é dramático e muito real.
A pobreza machuca a dignidade
Foram duas cenas rápidas. Rápidas, mas fortes. Profundas. Na primeira, nem deu pra ver o que ela tinha nas mãos, mas sei que procurava lavar os braços. Era uma jovem mulher acocorada em plena rua e procurando um pouco de limpeza na água abraçada por um buraco de rua. O buraco de rua até que estava servindo para alguma coisa! Mas como me deu vontade de oferecer-lhe o chuveiro do hotel onde eu estava hospedado, para que essa busca de limpeza se transformasse num banho digno!
Foi tudo muito rápido, pois o carro, naquele trânsito caótico, já seguira adiante. Meus olhos se despediram daquela jovem cujo nome eu nem sei, mas por quem meu coração chorou. Meus olhos ficaram mais tristes por armazenarem a imagem de uma desgraçada realidade que submete uma jovem mulher a uma vida tão indigna.
A outra cena foi noutro dia, mas não menos deprimente. Eu voltava da igreja onde havia acabado de pregar naquele domingo. Minha roupa era formal e a gravata falava de “dignidade”, acentuada por uma barba branca a se destacar num país de negros. Assim, eu era visto como “um estrangeiro rico”. Mas isso só viria aumentar o contraste do súbito momento em que, de relance, avistei outra jovem mulher, igualmente anônima e que também só vi de costas, de cócoras. Numa pequena calçada, morro acima, em plena capital nacional, lá estava ela a urinar. Sozinha. Vulnerável. Exposta. Meus olhos quase não acreditaram mas, rebobinando a cena, não havia como negar o quadro: a mocinha urinava na calçada. Sozinha. Vulnerável. Exposta.
Nem é preciso descrever a cena com maiores detalhes para se chegar à conclusão da violência que ela representa: uma mulher ter de urinar em plena calçada! Eu já tinha visto muito marmanjo se aliviar na rua, nas capitais de nossas cidades; mas ver uma mocinha fazendo isso, só pode trazer grande tristeza ao coração! De novo, por que eu não posso oferecer-lhe o meu banheiro de hotel? Por que ela não pode trancar a porta e dar ao seu ato um mínimo de digna privacidade?
A situação nem é difícil de entender. Como muitos dos feirantes por ali, ela tinha vindo de longe, e muito cedo. Quem pensa em banheiro quando a luta pela sobrevivência é coisa diária? Mas quando a menina-mulher precisa lavar-se na água acumulada num buraco de rua e a menina-moça urinar na calçada de uma rua central, a realidade de pobreza, sofrimento e caos humano chegou a níveis absolutamente profundos; e a dignidade da vida, individual e coletiva, escorre pelas veias abertas da injustiça que cobre tanto dos nossos países.
A esperança teima em nascer e renascer
Chegou a hora de embarcar para Cap-Haitian. Uma viagem rápida nos levou a um lugar do interior chamado Balan. Chegamos sem muita demora, apesar das marcas da enchente recente intensificarem a pobreza e dificultarem o acesso ao local. A comunidade estava reunida e o clima era de celebração. Assim que chegamos, a banda começou a tocar e o coral de adolescentes largou a cantar. Aliás, quem dirigia o programa era uma menina-moça que trouxe graça ao palco, convidando todos a recitarem um salmo. O povo respondeu e a recitação ganhou volume. Eu, meio perdido, não sabia ao certo se aquilo era o francês formal ou o vital crioulo, língua do coração do povo. Mas eles entoavam o Salmo 100:
Celebrai com júbilo ao Senhor, todas as terras.
Servi ao Senhor com alegria,
apresentai-vos diante dele com cântico.
Sabei que o Senhor é Deus:
foi ele quem nos fez e dele somos;
somos o seu povo, e rebanho de seu pastoreio.
Entrai por suas portas com ações de graça,
e nos seus átrios com hinos de louvor;
rendei-lhe graças e bendizei-lhe o nome.
Porque o Senhor é bom,
a sua misericórdia dura para sempre,
e de geração em geração a sua fidelidade.
A viagem ao Haiti já está no passado. Mas, nas nossas idas e vindas, imagens e sentimentos vão se armazenando. Muitas delas refletem a dureza e a tristeza da vida. É a moça-mulher e a menina-moça. Mas é também a imagem da banda que toca e dos adolescentes que cantam. É também a nota que celebra o menino na escola, a menina no coral e os adultos na pequena cooperativa que transforma a mandioca em pão. É a imagem do povo que recita o salmo, numa confissão de fé em Deus, em teimosa insistência na vida e num louvor que anima a caminhada e dá direção ao passo. É com estas comunidades pobres que aprendo a louvar a Deus em meio aos conflitos da vida, deixando a semente da esperança renascer no solo da confiança em Deus. Afinal, os pobres sabem fazer isso muito melhor do que eu com a minha gravata...
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Publicado originalmente na Revista Ultimato.
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