O menino tem duas marcas que carregará pela vida toda. Seja por dentro ou por fora, elas nunca serão esquecidas. Enquanto ele fala as marcas vão se tornando reais para todos nós que estamos na roda.
Uma delas vem das correntes. Desde os oito anos esse menino mirrado já trabalhava da manhã à noite numa “fábrica” de cigarros. No início do expediente lhe acorrentavam o pé. E acorrentado ele produzia, um por um, os cigarros baratos e muito populares em sua cultura. O cigarro era tão fininho que, para enrolá-lo, só com os dedos fininhos de crianças como ele. E daí, se isso produzisse lesões? Quem põe corrente em menino não se importa com isso.
A outra marca é visível no dorso de suas mãos ainda em formação. É lá que o capataz lhe agride com uma barra de ferro quando para de enrolar os cigarros que serão vendidos pelo seu dono. Pode acreditar. As marcas estão lá, gritando como foi sua vida. E a tristeza em seus olhos diz que isso durou tempo demais – para ele e para muitos outros pares de olhos tristes. Pois, enquanto comíamos o lanche juntos, outras histórias surgiram, de marcas similares advindas de experiências de violência e exploração produzidas por cafetões e capatazes que mantinham um sistema escravocrata à luz do dia.
Estávamos no salão comunitário de uma das vilas típicas da Índia. Uma comunidade com muita gente, muita vida, muita criança e muitos desafios. Aquela sala era o lugar de encontro, de relatar histórias, de experimentar apoio e sonhar o futuro no contexto de um projeto onde muitas dessas crianças são literalmente compradas para a liberdade, afirmadas em sua identidade e estimuladas a sonhar com uma amanhã diferente.
Mas nem precisa ir à Índia para encontrar crianças marcadas pelas dores da vida e pela pesada mão de exploradores e opressores. Basta ir aos centros de nossas cidades, às vilas de nossos conglomerados, às casas de pais violentos, para ver que a vida é muito difícil para muita gente. Muitos vivem à mercê de pessoas violentas e exploradoras e o mal marca presença de forma assustadora, avassaladora, criativa e continuada. É disso que estamos falando: da maldade humana (nossa maldade), na qual nossa sociedade está aninhada. E o olhar triste do menino é o sinal mais doloroso dessa realidade.
Se algo marcou a minha vida nas últimas décadas foi o descortinar da maldade humana. Ela é mais real do que eu imaginava e mais profunda e sistêmica do que posso compreender. É de uma crueldade indescritível e atinge mais gente do que se pode contar. E atinge crianças de um jeito que vai além de toda linguagem, toda poesia e toda lágrima assustada. Ela é tão real quanto o olhar triste daquele menino de corpo marcado e alma dilacerada. Eu passei a acreditar mais no mal e na sua força demoníaca, apesar de todas as explicações iluministas que, nos bancos acadêmicos, tentaram me levar a crer que quanto mais desenvolvido e esclarecido fosse o ser humano, menos mal haveria e quanto mais a ciência avançasse, mais autônomos e racionais seríamos. Passei a acreditar no mal porque vi. Aliás, todos nós vimos, pois a nossa história, nossos jornais, nossas sociedades e o próprio espelho denunciam do que somos capazes. O salmista, ao falar do ímpio, diz que “até na sua cama planeja maldade; nada há de bom no caminho a que se entregou, e ele nunca rejeita o mal”(Sl 36:4).
Que foi que você fez?
Por vários artigos desta série percorremos belos e significativos meandros da criação de Deus. Mas vimos também que não é possível cultivar a visão romântica de uma realidade que já não existe, pois todos experimentamos o odor da poluição, a violência nos relacionamentos, as estruturas injustas de nossa sociedade e a realidade do menino de olhos tristes a invadir nossos sonhos. Gênesis trata disso quando fala da queda e suas trágicas consequências, presentes entre nós e em nós. Essa narrativa não explica de onde o mal vem, mas nos confronta com a sua realidade; não é um relato especulativo nem teórico, mas a descrição da caminhada de cada um de nós em sua rebelião contra Deus e em busca da autonomia e do endeusamento próprio. No final deparamos com o menino dos olhos tristes e Deus nos perguntando: Que foi que você fez? (Gn 3:13).
O Senhor Deus fez roupas de pele
No mesmo texto, porém, acabei encontrando sementes de esperança que apontavam para o cuidado e a graça divina. Primeiro vi Deus confeccionando roupas de pele e com elas vestindo Adão e sua mulher (Gn 3:20). Depois, vi Adão celebrar o nascimento de um filho dizendo “com o auxílio do Senhor tive um filho homem” (Gn 4:1). E, numa terceira parada, ouvi Deus fazer a Caim uma pergunta cuja resposta parecia absolutamente óbvia: “Se você fizer o bem, não será aceito?”( Gn 4: 7).
Três paradas que nos fazem respirar, confiar e esperar. Respirar porque a ruptura com Deus e a instalação de uma autonomia rebelde não têm a última palavra. Confiar porque Deus é tão profundamente marcado pelo amor que, diante da nossa desobediência, não nos deixa descobertos mas nos veste com a roupa que ele confeccionou. E esperança porque podemos celebrar a continuidade da vida através dos filhos que de Deus recebemos e contar com sua misericórdia diante dos nossos próprios descaminhos. Assim, depois de um profundo suspiro, podemos dizer ao menino de olhos tristes que Deus o olha com um olhar de amor que é profundamente restaurador. Bem assim como Jesus fez.
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Publicado originalmente na Revista Ultimato
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