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Foto do escritorValdir Steuernagel

O zelo de Deus, o joio e o trigo!

Evangélicos em busca do Evangélico


O quarto do hotel e a minha profissão!

Não há como conseguir um quarto de hotel sem preencher um daqueles clássicos formulários que só sabem fazer perguntas: Endereço? Documento? Como será paga a conta? Profissão?... Eu já preenchi muitos desses formulários. De fato, não gosto deles. Eles são monótonos. Inquiridores. Detalhistas. Quando a gente está cansado e com sono, então, o formulário se torna ainda mais "interminável".


Pois foi exatamente isso que aconteceu, tarde daquela noite, em Belo Horizonte. Eu queria era um quarto e não um formulário. Mas não havia quarto sem formulário. E lá fui eu: Nome....Data do nascimento....Profissão....Então, diante deste item, eu senti algo estranho. Uma desconhecida relutância.


Entre a "Decadência" e a "Santa"

Em tantos formulários que já havia preenchido, eu sempre havia escrito "Profissão: Pastor". Eu o fazia com decisão. Com segurança. Com um toque de reserva moral, até. Mas naquela noite eu senti vulnerabilidade: "Eu escrevo pastor... e como é que o atendente vai me olhar?" É claro que escrevi pastor no formulário; mas eu sabia que algo havia me afetado. Eu sentia brotar dentro de mim uma nota de insegurança e defensividade. E eu sabia de onde ela vinha. Eu sabia que ela tinha relação com essa tal de mini-série intitulada Decadência, veiculada por uma rede de televisão, e com o tal de "chute na santa", veiculado por outra rede de televisão. No primeiro, uma determinada expressão do que seria a fé evangélica foi caricaturizada, desvirtuada e ridicularizada. Na outra, se "ofendeu" e desrespeitou a expressão popular de um catolicismo que adquire forma na veneração dos santos. Em ambos os casos a mídia televisiva, verdadeiros olhos do nosso tempo, foi fundamental, ao transformar tanto a veiculação da Decadência como o ocorrido "chute na santa" em "questão nacional".


Não, não é verdade que essas duas veiculações tenham retratado a tantos que nos sabemos vocacionados para ser pastores. Nem é verdade que elas tivessem retratado a vocação e a realidade do que verdadeiramente significa ser evangélico e ser igreja de Jesus Cristo. Mas elas produziram, a nível da população, um bocado de confusão. Ademais, tornaram evidente o quanto se pode "caricaturizar para baixo" tanto o ministério pastoral como o ser igreja. A essas alturas, a reserva moral que pensávamos inerente ao ser evangélico, mas já havia sido abalada por comportamentos públicos e políticos outros, se havia ido pelo ralo. Precisaria ser reconstruída -- o que não é uma tarefa fácil, em meio a tanta confusão e tanto "desvio", em meio ao surgimento de tantas igrejas e movimentos evangélicos.


Como estava chegando a hora de escrever o meu artigo para o Ultimato, eu sentia essa ameaça no ar: "Você teria de falar algo sobre esse assunto". E, como se a minha vozinha interior já não bastasse, ainda veio, pelo telefone, aquela voz do editor da revista: "Que tal se você abordasse...mas você fica livre para escolher o assunto." Eis a liberdade que se vive no cercado.


Eu tinha várias razões para não querer escrever sobre este assunto. Primeiro, porque eu não creio que a gente tenha de estar se defendendo e se explicando. A nossa vida e ministério devem falar por nós. Pois, ou somos ou não somos, "para com Deus o bom perfume de Cristo"(2 Co 2.15). Segundo, porque a vocação de separar o joio do trigo não é nossa. Ela é exclusiva de Deus: "Deixai-os crescer juntos até à colheita, e, no tempo da colheita, direi aos ceifeiros: 'Ajuntai primeiro o joio, atai-o em feixes para ser queimado; mas o trigo, recolhei-o no meu celeiro'." (Mt 13.30). Terceiro, porque é muito fácil cair na tentação de discernir o "argueiro no olho de teu irmão" e ser incapaz de reparar na "trave que está" no próprio olho da gente ( Mt 7.3) E, não por último, eu considero lamentável que a expressão evangélica da fé cristã caia -- às vezes legitimamente, às vezes ilegitimamente -- nesse processo público de análise e/ou caricaturização como resultado do qual pessoas possam deixar de querer ouvir e ser sensíveis à própria mensagem evangélica.


Mas então, "cercado pelas vozes", eu me convenci de que precisava escrever este artigo. Na verdade, a coisa foi mais profunda. Foi a própria Palavra de Deus que me inspirou nessa decisão. Afinal, a Bíblia já conhece situações onde a igreja enfrenta deturpações e onde a fé é deturpada. Algumas vezes essa deturpação vem de fora da fé. Da parte dos inimigos de Deus. Mas, outras vezes, ela nasce dentro da família da fé. A carta de 2 Timóteo fala destes como "tendo forma de piedade" mas sem estarem com a verdade. Aliás, eles "resistem à verdade" (2 Tm 3.5,8). Mas eles conseguem chegar e têm público. Como diz ainda a segunda carta a Timóteo, eles "penetram sorrateiramente nas casas e conseguem cativar mulherzinhas sobrecarregadas de pecados, conduzidas de várias paixões, que aprendem sempre e jamais podem chegar ao conhecimento da verdade" (2 Tm 3.6-7). Nos episódios recentes em torno à Decadência e à "santa" nós estamos enfrentando tanto uma coisa como a outra. Ou seja, há questões externas a serem discernidas. Afinal, a rede de televisão que veiculou a série Decadência não é, certamente, conhecida como sendo sensível à causa evangélica. Mas há também questões internas a serem analisadas. Afinal, o "chute na santa" faz parte de um pacote e de uma prática evangelizadora e pastoral que tem caracterizado setores do assim chamado ultra-pentecostalismo contemporâneo, expresso especialmente através da Igreja Universal do Reino de Deus. Quanto às questões externas, uma contribuição importante nos é dada por Stela Bastos no seu artigo Diabólica Decadência, publicado pela revista Vinde (ano 1, nº 1, p. 54-56). Eu, através deste artigo, me concentro no que aqui chamo de "pastoral do chute". São basicamente quatro os aspectos que quero abordar.


O zelo de Deus me consome!

Uma das razões pelas quais eu não queria escrever este artigo é que eu tenho medo de não estar do lado de Deus. A possibilidade da amizade com Deus me é extremamente importante, e eu sei que ele tem por mim o maior carinho. Mas eu também tenho aprendido que com Deus não se brinca. Ademais, Deus é livre e soberano. Ele está lá onde não imaginamos que esteja. Ele faz coisas que nunca pensaríamos que ele fizesse. Portanto, precisamos estar sempre abertos para que Deus esteja atuando cá e lá, nos diferentes pastos evangélicos onde nos movimentamos. Deus não permite que nós o limitemos ou enquadremos: "Deus está fazendo isto, mas não pode estar atuando ali." Apenas Deus é o limite de Deus. Ele só pode ser identificado como estando lá onde ele possa ser quem ele é em sua plenitude. Ou seja, não podemos identificar algo como sendo de Deus, se o conteúdo do que estamos fazendo não aponta para quem é Deus e para o que Deus quer. Em outras palavras, ainda: é a própria Palavra de Deus que compartilha conosco acerca de quem ele é, do que ele faz e de como ele faz o que ele faz. Será que Jesus teria chutado a santa? Ele faria coletas como elas são feitas em algumas igrejas? Ele expulsaria demônios como se está fazendo em alguns cultos?


Eu só posso pronunciar a minha palavra diante do espelho.

A fé cristã é aberta e democrática. Não é nem este nem aquele que é o dono da verdade ou que detém o monopólio de ser instrumento de Deus. Deus não só é livre para atuar onde quiser, como também decide atuar no Corpo e através do Corpo de Cristo, que é a Igreja. É no contexto do Corpo que se discerne a verdade, se delimita o conteúdo da fé e se decide pela pedagogia -- seja evangelizadora, seja pastoral -- mais adequada, uma vez considerada a Palavra e o respectivo contexto. Ao cristão individual compete integrar-se e submeter-se ao Corpo -- quando este é também submisso à Palavra. Eu faço, aqui, uma apreciação crítica à "pastoral do chute". Mas eu só posso fazê-lo em vulnerabilidade. Ou seja, só posso fazê-lo na medida em que estou submisso ao Corpo, aberto à crítica e pronto para o exercício da autocrítica. O mesmo apóstolo Paulo que criticou fortemente a Pedro foi aquele que se submeteu ao veredito do Concílio de Jerusalém quanto à posição da igreja em relação aos gentios (veja Gálatas 2 e Atos dos Apóstolos 15). Portanto, a palavra que pronuncio neste artigo é proferida em espaço democrático e consciente da necessidade de receber a palavra do outro.


Que Cristo seja pregado!

O apóstolo Paulo era extremamente zeloso quanto à verdade do evangelho. Ele não permitia que a pregação evangélica se desviasse de Cristo. Mas, conquanto que Cristo fosse o conteúdo dessa pregação, ele estava disposto a celebrá-la: "Alguns efetivamente proclamam a Cristo por inveja e porfia; outros, porém, o fazem de boa vontade...Todavia, que importa? Uma vez que Cristo, de qualquer modo, está sendo pregado, quer por pretexto, quer por verdade, também com isto me regozijo..." (Fp 1.15-17). A esta palavra do apóstolo também eu me rendo. A pregação da Palavra de Cristo não é monopólio de nenhum grupo e vai além das nossas próprias motivações. Isto não torna as minhas motivações indiferentes ou secundárias, mas me convida ao exercício da misericórdia para com o outro e me ajuda a tomar consciência da própria misericórdia de Deus para comigo. Mas há uma ressalva: eu nunca posso usar este texto em meu favor. O texto nunca pode relativizar a minha própria integridade. Eu só posso usar o texto em favor do outro e como afirmação da liberdade e da graça de Deus. Eu não compartilho da "pastoral do chute"; espero, porém, que Deus capitalize para o seu Reino os meus próprios chutes, bem como os chutes dos outros... desde que "Cristo, de qualquer modo", esteja sendo pregado.


Dizer sim e dizer não. Os limites e as fronteiras!

A graça de Deus é inclusiva, mas a verdade de Deus é circunscrita. Ou seja, Deus quer que todos venham a ele; mas nem tudo o que se diz e se faz em nome dele tem a sua marca. E essa marca pode ser reconhecida, pois ela é a marca da cruz. É em torno à cruz que se pronuncia o sim e o não de Deus. Quem aceita e carrega a cruz recebe o sim de Deus. Quem esconde, encobre ou rejeita a cruz recebe o não de Deus. A primeira carta de Paulo aos Coríntios é a expressão elaborada desta teologia da cruz: "Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo, e este crucificado" (1 Co 2.2). Foi este o evangelho que Paulo recebeu e foi este evangelho que ele passou adiante ( 1 Co 11.23ss). E qualquer um que tocar neste evangelho é anátema: "Mas ainda que nós mesmos, ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema" (Gl 1.8).


A teologia da cruz é, pois, o referencial de toda a teologia. E a teologia que abraçamos determina a visão de mundo que temos (e vice-versa), a evangelização que praticamos e a pastoral que exercemos. Seja isso de forma elaborada e consciente, seja de forma empírica e até inconsciente. Se esta pressuposição é correta, resta-me abordar uma última pergunta: a "pastoral do chute" reflete ou não a teologia da cruz? Eu não me proponho a responder a esta pergunta. Gostaria, porém, de compartilhar com o leitor algumas perguntas que considero importante formular. Em cada uma dessas perguntas eu creio abordar uma das colunas centrais que compõem o edifício da "pastoral do chute".


  1. Será que o uso dos meios massivos de comunicação social, tais como a televisão e o rádio, não se dá sob a marca do espírito de cruzada? Apenas a arma seria outra, mas o espírito seria o mesmo: a conquista a qualquer preço. É verdade que a nossa evangelização pode ser ousada, mas o evangelho que pregamos tem a distintiva marca do amor. A evangelização que visa a conquista do outro e do seu respectivo espaço de movimento, seja individual ou coletivo, não é digna do evangelho de Jesus Cristo.

  2. A filosofia da prosperidade, mesmo que batizada de teologia, não estaria materializando a expressão da própria fé cristã? Medir a prosperidade em termos materiais é um ato profundamente mundano e desvirtua o conceito bíblico da bênção. A Bíblia suspeita deste tipo de prosperidade, o que não significa dizer que ela sacraliza a pobreza. Ademais, essa filosofia dá à competição uma auréola que ela não tem nem merece. À competição, que é um valor profundamente inflado no capitalismo, a Bíblia contrapõe a caminhada da segunda milha e a priorização do outro, especialmente do pequeno, do fraco, do explorado e do pobre.

  3. A ênfase tão acentuada na expulsão de demônios não estaria dando ao diabo uma exposição que ele não merece? É óbvio que a possessão demoníaca é uma realidade e que a libertação é uma prerrogativa profundamente evangélica. Basta ler os evangelhos para se convencer disso. Mas é interessante que Jesus é "curto e grosso" com o diabo. Ele não o infla, nem lhe dá um valor e um espaço que não lhe cabem. O diabo precisa ser expulso, e não provocado e/ou alimentado. Ele não merece ser invocado para além da expulsão. A Deus cabe estar na luz e ao diabo cabe, no máximo, a sombra. A Deus cabe a glória, a honra e a invocação.

  4. A cura como critério de fé não seria uma mercantilização da própria fé? Além do mais, o pregador sempre pode dizer que o outro não foi curado por não ter tido fé. Jesus nem curou todas as pessoas doentes da sua época, nem vinculou a doença, necessariamente, ao pecado. Isto não significa dizer que ele não tivesse curado muitas pessoas ou que ele não pudesse curar pessoas enfermas em nossos dias. Eu estou certo de que ele as cura. Mas ele cura quando quer e não quando eu mando. E ele cura como quer e não em resposta ao meu grito. E, se ele não curar uma determinada pessoa, isto não significa que a tenha abandonado ou que ela seja menos digna do seu amor, ou, ainda, que ela não tenha uma fé legítima e profunda. A Deus cabe a soberania, também no que se refere à doença. E a ele cabe a glória, independente do que acontece com a doença que uma determinada pessoa tenha. E este dom de Deus que se chama fé é fundamental, seja quando eu experimento a cura, seja quando Deus me quer convivendo com e aceitando um determinado "espinho na carne", para usar a linguagem do apóstolo Paulo.

  5. É legítimo estabelecer um estilo de culto que tem na oferta o seu aspecto central? É possível vincular a bênção de Deus ao valor que eu, sensibilizado pelo apelo pastoral, coloco na sacola da oferta? Mesmo que amanhã não se tenha o dinheiro para o leite das crianças? Esta ênfase descomunal na oferta me parece indicar justamente uma relação de sede e ganância para com o dinheiro que a Bíblia critica (veja 1 Tm 6). É claro que há lugar para a oferta na igreja. Mas não há lugar, nem para a exploração do outro, especialmente do pobre, nem para a hierarquização da bênção à luz do valor que se deposita na sacola. Basta lembrar a história da viúva pobre, contada por Jesus (Lc 21. 1-4). E olha que ela foi bem-aventurada!


Esse artigo acabou ficando longo. Mesmo assim, eu chego ao seu final com a impressão de que o assunto merecia mais espaço e um melhor tratamento. Mas esse "gostinho de inacabado" é, neste artigo, o meu espelho. Diante dele eu paro, sabendo precisar do outro e da misericórdia de Deus. Ademais, do meu espelho eu caminho para a cruz. Porque lá há lugar para mim e para o outro. É lá, também, que se decide o que é verdadeiro e real. E só o que permanece de joelhos aos pés da cruz é que merece ficar de pé... para a glória de Deus.


 

Publicado originalmente na Revista Ultimato.


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