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Os EUA na berlinda

Foto do escritor: Valdir SteuernagelValdir Steuernagel

Perguntas e Respostas,

com Valdir Steuernagel.

Setembro de 1996.


Os EUA são uma nação cristã?


Alguns países, no decorrer da sua história têm se intitulado ou têm sido qualificados como sendo cristãos. O nosso próprio país, o Brasil, é um exemplo nesta direção. O mesmo tem acontecido com os EUA, com a diferença de que, no Brasil, a influência católica co-determinou o processo de conquista enquanto nos EUA as forças protestantes, abraçada por muitos dos pioneiros da colonização da América, fortemente marcaram a construção daquele país. Mas, a rigor, não se pode dizer que os EUA são ou foram uma nação cristã. O que se poderia dizer é que a fé cristã, tanto na sua expressão protestante como católica, tem tido uma forte influência naquele país. Se poderia dizer, ainda, que o crescente e avassalador processo de secularização está empurrando, também nos EUA, a expressão pública da fé cristã para a linha do escanteio. Biblicamente falando, no entanto, se deveria deixar claro, que nenhuma nação pode ser considerada cristã por mais que os seus dirigentes e setores do seu povo queiram viver a sua fé de forma consistente e integral. O que tem acontecido na história da igreja é que quando nações se intitulam cristãs, elas acabam sendo um contra-testemunho no que se refere a natureza e a vocação da própria fé cristã.


Com a queda do muro de Berlim e a derrocada do comunismo, os Estados Unidos são hoje a nação mais poderosa do mundo?


O que caiu em 1989, em Berlim, foi mais do que um muro. O que ruiu foi a própria possibilidade de se construir um mundo onde as diferenças e as desigualdades pudessem desaparecer. Foi o tombo das utopias. O que ruiu, ainda, foi um mundo dividido em dois blocos, sendo um lado comunista e outro capitalista. E, nesta queda do muro se evidenciou que a experiência comunista, como vivenciada no Leste Europeu, foi um tremendo engodo. Para o mundo capitalista, a queda do muro se constituiu numa festa. A festa da vitória. O capitalismo seria o único sistema econômico e social viável e bem sucedido. Os EUA se transformaram nos maiores protagonistas desta festa. Ademais, do ponto de vista ideológico e macro-político,

os EUA ficaram sem um grande inimigo. Os próprios países do Leste Europeu, na sua sede de novos caminhos, passaram a olhar os EUA como um modelo e uma fonte de ajuda e inspiração, tanto política como econômica. Um sonho e uma expectativa impossível de ser atendida, como não é difícil de imaginar e como a nossa experiência capitalista, aqui na América Latina, o tem demonstrado.


Do ponto de vista militar os EUA são hoje, certamente, a nação mais poderosa do mundo. Do ponto de vista econômico e político, no entanto, isso é verdade só em parte. Primeiro porque as forças econômicas de hoje já não respeitam e /ou se limitam às fronteiras geográficas. Segundo, porque a força econômica da Ásia não está brincando em serviço. Do ponto de vista político, é a Europa, que nem sempre quer se submeter às propostas políticas dos EUA e o Médio Oriente que teima em querer promover as suas exceções, como a experiência iraquiana o está demonstrando no momento.


Sob o ponto de vista cristão, a política externa americana é ética?


Perguntar se a política externa americana é ética, é quase uma contradição, em termos. As políticas externas de nossos países, seja o Brasil ou os EUA, são pragmáticas. Interesseiras. O valor dos valores conta muito pouco enquanto o valor dos números é devidamente contabilizado. E, como sabemos, a distância entre os interesses nacionais e a hipocrisia é demasiada pequena. É muitíssimo menor do que a distância entre Cuba e China. Enquanto o primeiro e pequeno país é boicotado, a grande, poderosa e também ditatorial China é tratada como um parceiro comercial preferencial. Há, pois, na prática política das nações, muitos pesos e muitas medidas.


Se o comunismo representava uma ameaça à religião por ser ateu, materialista, ditatorial e revanchista, poderia se dizer que o capitalismo, esposado pelos EUA, sintoniza com os valores do cristianismo?


O comunismo, como praticado no presente século, já morreu tarde. Deixou saudade em alguns poucos privilegiados e ameaça reaparecer por falta de alternativas fáceis, e por vezes viáveis, que o substituam. Que ele representou um atentado tanto à liberdade de culto como a liberdade de viver é inegável. Os rastros de sangue, de destruição e de exploração que ele deixou atrás de si falam por si só. Concluir, a partir disso, no entanto, que o capitalismo sintonize com os valores cristãos é ser tão cego e interesseiro como aqueles que, ontem, abençoavam o comunismo. Em reunião recente, na Romênia, com irmãos e irmãs da Europa Oriental eu tive oportunidade de hes dizer que se eles quisessem ver o outro, mas ainda assim verdadeiro, rosto do capitalismo eles deveriam visitar o quintal da América Latina, com os seus cortiços e suas favelas, as suas prostitutas e os seus meninos de rua, os seus desempregados e mendigos.


O capitalismo é tão ateu, materialista como o comunismo. Só que ele é mais sutil. Ele pode não prender e fuzilar os seus aponentes mas ele os seduz e os ilude. Elimina os seus inimigos pela exclusão. O deus do capitalismo é o lucro. É possível algo mais maternalista do que o capital? A sua expressão ditatorial se chama "lei do mercado". Ou você entra e se adapta ou você está fora e morto. O mercado, assim se poderia dizer, é um dos nomes contemporâneos da besta.


A decadência americana, como potêcia mundial, já começou?


Ao estudar um pouco de história não é difícil de concluir que a decadência das potênciais mundiais é inevitável. Ela se processa, geralmente, de dentro para fora. A sua visibilidade é proporcional a sua irreversibilidade. Ou seja, quando a decadência é exteriormente palpável e visível, já é muito tarde para que ela possa ser revertida. A decadência começa sendo moral para terminar sendo global; política, econômica, social e militar. Não seria difícil exemplificar: uma geração trabalha duro mas a geração seguinte prefere usufruir do que a geração anterior acumulou; uma geração tem valores de conduta claros e rígidos mas a geração seguinte relativiza àqueles valores e busca espaço para o novo quando não para o oposto; uma geração põe o sangue a serviço da pátria mas a geração seguinte prefere pensar em si.


Os Estados Unidos da América do Norte continuam sendo fortes e tem mostrado positivos sinais de saúde e renovabilidade econômica. O seu poderio militar é, no momento, inquestionável. Mas os sinais da sua fragilidade são, igualmente, inevitáveis. A sua decadência moral, a frouxidão e a relativização ética das suas igrejas históricas, o seu enorme e até agora irreversível déficit comercial, a sua mitificação do individualismo, a sua obsessão pelo consumo e a fragilidade das suas propostas e da sua prática política são inequívocos sinais vermelhos no cenário da vida nacional americana.


Qual é o quadro eclesial que se desenha nos EUA de hoje? O velho conflito entre o

liberalismo e o fundamentalismo ainda é relevante?


É verdade, o conflito entre o liberalismo e o fundamentalismo ficou velho. E não deixou saudade. Enquanto o cristianismo protestante/evangélico ainda está significativamente dividido entre o que se tem chamado de liberais e conservadores, o cenário de hoje é diferente e adquire coloridos novos. Em primeiro lugar, porque o liberalismo protestante está terminalmente doente. É assustador perceber o quanto a maioria das igrejas representativas do protestantismo histórico tem se mostrado incapaz de reagir a sua própria inercia. Em segundo lugar, porque o modelo denominacional de igreja parece ter esgotado a sua capacidade de articular propostas viáveis, produzir adrenalina, gerar relacionamento e motivar para o risco e para o novo. As denominações têm se tornado em arautos da manutenção; o que já não lhes garante um lugar ao sol no dia de amanhã. E, não por último, o que se experimenta e se testemunha hoje é um estado de crise da instituição como instituição. Especialmente da grande instituição. Essa crise afeta não somente as igrejas históricas mas também as agências missionárias; muitas das quais se tornaram grandes, caras, sofisticadas, burocráticas e lentas.


O que se percebe no quadro eclesial da igreja Norte Americana de hoje é a tendência para o crescimento da comunidade independente e para a prática missionária, que quer estabelecer um contato direto com o campo de trabalho. É nesse contexto que prolifera a relação direta entre, por exemplo, a igreja do Norte e a do Sul, a igreja com recursos materiais e a igreja sem recursos materiais mas com disponibilidade de ministério e serviço.


As igrejas conservadoras parecem trabalhar com uma agenda que se limita às questões da sexualidade, tais como a virgindade, o homossexualidade, o aborto e a fidelidade no casamento. Isso confere?


É verdade, isso confere. A maioria das igrejas evangélicas, classificadas de conservadoras, tem reduzido a sua agenda pública às questões morais. Isso tem acontecido não só nos EUA mas tembém no Brasil, como se o tem percebido na atuação de grande parte da bancada evangélica, no Congresso Nacional Brasileiro.


Não se deveria deixar de ressaltar a importância desta agenda. O seu problema é a sua unilateralidade. O que ela deixa de fora. O seu silêncio. A fé cristã nos convida e nos convoca tanto para a prática e a advocacia de uma ética individual e familiar como para uma ética pública e, portanto, política. Uma não pode ser super-acentuada em detrimento da outra. Eu chamaria atenção para o fato de que a ética familiar e sexual merece tanto cuidado quanto a questão da distribuição da renda e da terra, a questão do desemprego e do acesso a tecnologia da inteligência. A igreja tem o privilégio e o compromisso de abraçar e interpretar todo o conselho de Deus para todos os povos em todo o tempo.


No testemunho bíblico expresso no Antigo Testamento, os profetas levantam a sua voz crítica tanto em relação a Israel como em relação as outras nações. Esse tipo de ministério profético parece desaparecer no Novo Testamento. Ele teria de ser exercido em nossos dias?


O jeito como se lê a Bíblia é de enorme importância. Não podemos, por exemplo, ler o Antigo Testamento em termos literais. Como Igreja de Cristo, nós interpretamos o Antigo Testamento a luz do Novo Testamento. Mas não se pode concluir, dessa interpretação, que aquilo que o Novo Testamento não repete, do Antigo Testamento, é necessário ou possível, simplesmente descartar. No que se refere ao ministério profético, o Novo Testamento não deixa de endossar a ênfase do Antigo Testamento. Ou seja, as questões fundacionais do ministério profético, que são a idolatria e a injustiça precisam ser continuamente abordadas e denunciadas. Isso o Antigo Testamento elabora, o Novo Testamento endossa e a igreja abraça.


Uma igreja que não tem espaço para o ministério profético está lendo a Bíblia pela metade e vivendo um discipulado claudicante.


Há alguma relação entre o exercício das missões trasculturais e a prática política

americana?


O que ocorre na história da prática missionária protestante/evangélica moderna é que ela tem estado, em sua grande maioria, atrelada ao exercício do poder colonial e/ou hegemônico.


A partir do século XIX até meados do século XX, a Inglaterra, então com poder imperial, foi o grande celeiro das missões mundiais. A partir da 2a guerra mundial são os EUA, com seu emergente e crescente poder econômico e seu significativo crescimento missionário, que se transformam neste celeiro. A consequência desse desenvolvimento histórico é que a prática missionária tem estado em muitos lugares e em muitas ocasiões, atrelada a expansão imperial e econômica. Estando assim, nas mãos dos poderosos e dos ricos. É claro, então, que há uma relação, por exemplo, entre o missionário americano que tem estado na Guatemala e a intervenção americana que se dá naquele país diante da chegada ao poder de um presidente que não lhes é favorável. A defesa do interesse econômico e político das nações não pergunta pelas implicações prioritariamente humanas, éticas e missiológicas por ela desencadeada.


Os EUA está em ano de eleição. Entre os dois candidatos principais Clinton (Democrata) e Dole (Republicano) quem seria o mais indicado para a presidência dos EUA.


Felizmente eu não preciso votar nos EUA. Seria difícil escolher entre os candidatos disponíveis. Mas esta dificuldade não é apenas Norte Americana.


A democracia, como a estamos experimentando hoje, seja no Brasil ou nos EUA, é certamente uma das melhores formas de governo disponíveis no mercado político dos nossos dias. Mas esta conclusão não muda o ânimo do nosso desânimo.


O que se experimenta hoje é uma profunda crise política. Uma crise que se expressa no amplo descrédito e suspeita que se tem em relação aos partidos políticos, e em relação a prática política como ela se tem expressada nas democracias tradicionais.


No entanto, enquanto não encontramos um modelo político mais justo e verdadeiro, vamos sustentando a democracia que temos e votando nos políticos que temos. É interessante observar, por exemplo, que o nível de suspeita do povo americano em relação ao candidato a reeleição, Bill Clinton, é bastante alto. Mesmo assim, no entanto, e salvo alguma "grave e escandalosa descoberta" ele deve ganhar as eleições presidenciais. É para ele também, que o meu voto seria encaminhado... apesar de tudo.


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Publicado originalmente na Revista Ultimato.

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