O programa do dia estava traçado e eu sabia que ele seria difícil. Nós estávamos na Uganda e iríamos a Rakai, numa visita carregada de realidade e de simbolismo. Rakai é uma das áreas da África onde primeiro estourou o vírus da AIDS e onde, anos depois, estão sendo colhidas as consequências dessa desgraça, pois o índice de pessoas contaminadas por esse vírus mortal chegou a mais de 30%. Assim, quando o vírus começou a se manifestar nas pessoas e elas começaram a morrer, o quadro de muita dor, sofrimento e necessidade não se fez esperar. Naquele dia, pois, os nossos olhos iriam ver um pouco dessa realidade de enorme sofrimento.
Mas nós iríamos ver mais do que isso. É que em Rakai se conseguiu deter o índice de crescimento de pessoas contaminadas pelo vírus da AIDS. Hoje, o índice de contaminação está em torno de 6%, o que significa um decréscimo importante e alvissareiro. E esse descréscimo se deu também porque a igreja decidiu entrar no jogo. Decidiu falar sobre o assunto e recomendar a abstenção sexual e o sexo marital como um dos instrumentos mais eficazes no controle daquilo que a ONU declarou como uma peste, no continente africano.
As consequências da presença do vírus, no entanto, são avassaladoras; e são as crianças e os idosos as maiores vítimas dessa peste. Ao nos confrontarmos com essa realidade de sofrimento, nosso coração se partiu e a busca por uma resposta da parte de Deus não tardou a chegar. A Silêda estava comigo e chorou muito naquele dia. Depois, de volta ao hotel, ela desabafou no papel um pouco da experiência daquele dia. É isso que compartilhamos aqui com os leitores.
Este é um convite para que vocês caminhem conosco por Rakai.
Eu já tinha visto pobreza antes. Nasci e me criei na região mais pobre do Brasil e minha família dispunha de poucos recursos. Assim, bem cedo na vida experimentei e vi ao meu redor o que era ter de contentar-se com pouco ou quase nada. Foi a ação de Deus, pelo poder do evangelho, que mudou a nossa história e fez de mim o que sou hoje.
Não é a primeira vez que eu vejo miséria e sofrimento. Já vi isso em outros lugares, assim como em meu próprio país. Desta vez, porém, ao visitar projetos da Visão Mundial em Rakai, na Uganda, meu coração foi particularmente “partido pelas coisas que partem o coração de Deus”, como dizia Bob Pierce, o fundador da Visão Mundial.
A última gota que fez meu coração transbordar de dor foi o encontro com a pequenina Maria. O propósito da visita, disseram-nos, era entrar em contato com o sofrimento causado pela AIDS. Era confrontar-nos com a realidade de famílias que são constituídas apenas pelos filhos, já que ambos os pais morreram em função desse maldito vírus. E lá fomos nós ao encontro de uma família onde Ricardo, o filho mais velho, de dezesseis anos, viu-se subitamente “promovido” a chefe de família quando o pai e a mãe morreram, há dois anos.
Enquanto a atenção de todo mundo voltava-se para Ricardo, ouvindo-o compartilhar, através de um intérprete, a sua luta para sobreviver com os quatro irmãos menores, eu me vi, pouco a pouco, sendo “adotada” pela figurinha esquelética, arredia e impressionantemente triste de Maria, a irmã mais nova da família. Bastou um sorriso, depois uma leve carícia na cabecinha dela... e aconteceu. Primeiro, um dedinho; depois, o segundo; e finalmente ela estendeu a mão minúscula e pousou-a na minha, pressionando-a levemente. Algumas lágrimas teimaram em rolar pelo meu rosto enquanto eu acariciava aquela mãozinha raquítica muito suavemente, como se um simples toque meu fosse capaz de quebrar aqueles dedinhos que, de tão frágeis e fininhos, me davam a sensação de penas de passarinho. Ela ergueu a cabeça e me deu uma olhadela rápida e desconfiada; depois outra... e então, disfarçadamente, estendeu o braço para trás e a outra mão buscou a minha. E assim a menininha de seis anos, que parece ter apenas três, começou a lançar para mim uns olhares meigos, medrosos e pedichões, enquanto nós duas, de mãos dadas, percorríamos com o grupo o que restava do casebre miserável onde eles haviam morado com os pais e que agora havia desabado. “E os seus pais, onde estão?”, alguém perguntou; e Ricardo nos levou ao quintal, mostrando-nos quatro montinhos de terra cuidadosamente emoldurados com pedras. “Este é o meu pai, e esta é mamãe. Esta aqui é nossa irmã e aquele o nosso irmão, que morreram depois e nós enterramos aqui, ao lado deles.” E ali, enquanto fitávamos as cinco crianças cabisbaixas ao lado das sepulturas, de repente a pequenina Maria agarrou minhas duas mãos e, num gesto inesperado, puxou o corpinho para cima e aninhou-se em meus braços como se fosse um bebezinho procurando o seio de sua mãe! Eu não consegui mais segurar as lágrimas. E ela ficou ali, olhando para cima, um sorriso que era um misto de uma tristeza profunda e distante e acentuada doçura, me amando com os olhos e apertando o corpinho frágil contra o meu, os dedinhos finos agarrando-se a meus braços e à minha mão, como se buscasse desesperadamente por proteção. Passados alguns instantes, ela deu um profundo suspiro, deitou a cabeça em meu peito e relaxou em meus braços, mas sem abaixar os olhos; e assim ficou por um longo tempo, olhando persistentemente para mim, com um leve sorriso nos olhinhos tristes.
Até a hora de partirmos, Maria não me largou um instante. De vez em quando, levantava a cabeça e me olhava, como se quisesse assegurar-se de que eu ainda estava ao seu lado. E, num dado momento, ela fixou os olhos em mim e assim ficou por um longo tempo. Aí não suportei mais. Ajoelhei-me ao seu lado e encarei-a de frente, deixando as lágrimas correrem livremente e acariciando seu rostinho emaciado, como se ela fosse minha própria filhinha. Então ela aconchegou-se em meus braços com a maior naturalidade e sorriu para mim quase à vontade. Tive a nítida sensação de que ela vira nas minhas lágrimas liberadas uma permissão para que ela me confortasse! Ao acariciar a pequena Maria naquela hora, eu senti no fundo do coração que eu é que estava sendo amada, abraçada e adotada por aquela menininha sem mãe.
Meu coração sangrou ao deixarmos aquele lugar. Eu não queria ir embora. Aqueles cinco órfãos podiam ser meus filhos! Abracei Maria pela última vez, pensando: “Pobrezinha! Será que você ainda se lembra do que é um pai ou uma mãe? Será que ainda recorda como é a sensação de sentir-se profundamente amada por sua mãe?!” É claro que ela lembrava! Eu tinha visto a resposta claramente na forma como ela havia me “adotado” durante aqueles momentos. E enquanto eu chorava silenciosamente, na viagem de volta a Entebbe, onde estávamos hospedados, comecei a orar e pedir a Deus que, pelo menos naquela noite, Maria pudesse adormecer acalentada pela sensação gostosa de ter sido, uma vez mais, amada e protegida por sua querida mãe.
“Ó Deus amado! Esta pequenina precisa sentir-se amada e protegida de novo! Mas, quem faria isto?!” Esta pergunta foi a ponte que Deus usou para me trazer de volta à realidade. Afinal, bem ali do meu lado, sentada no banco do carro, estava Verônica, uma dos setenta funcionários da Visão Mundial que ficariam na Uganda depois que todos nós regressássemos aos nossos países. Eles é que serão usados por Deus, dia após dia, para servir e amar estas pessoas em nome do Senhor Jesus Cristo. Eles é que enfrentarão o desafio de mostrar em seu próprio rosto a face de Cristo, de proporcionar com suas mãos o toque curador de Jesus a cada pessoa sofredora, tanto em Rakai como em outros lugares deste país assolado pelo vírus da AIDS e por tantas outras dificuldades e provações.
“Mas, Deus”, argumentei no coração, “isso é demais! Ter de enfrentar isso todo dia, dia após dia, é tarefa dura demais, acaba com o coração de qualquer um! De onde é que eles vão tirar forças para persistir num trabalho tão doloroso? E a família deles, como é que fica? Esse pessoal todo vai acabar se arrebentando, nesse processo!”
Ao orar por aquelas pessoas que trabalham com órfãos e viúvas na Uganda, me veio à mente a história bíblica da viúva de Sarepta. As palavras dançaram em minha mente a viagem inteira: “Não tenha medo... Assim diz o Senhor... A farinha na vasilha não se acabará e o azeite na botija não se secará até o dia em que o Senhor fizer chover sobre a terra”.
Ao chegar ao hotel, peguei a Bíblia e fui ler 1 Reis 17. Como se a estivesse lendo pela primeira vez, fui descobrindo na conhecida passagem várias coisas para as quais nunca havia dado atenção antes. Primeiro, numa época de terrível fome e extrema dificuldade, Deus diz ao profeta: “Vá imediatamente... e fique por lá” (v. 9). Outra coisa estranha que Deus diz a Elias é que ordenou a uma viúva naquele lugar que forneça comida ao profeta! (Não deveria ser o inverso?!) Outra coisa que me chama a atenção é que é o profeta quem pede à viúva que lhe traga água e comida. Ele diz assim: “Pode me trazer um pouco de água numa jarra para eu beber? ... Por favor, traga também um pedaço de pão” (10-11). E o surpreendente é que essa viúva supre mesmo as necessidades do profeta, usando os únicos e escassos recursos que lhe restavam! E, finalmente, descubro que ao confiar em Deus e obedecer a sua palavra, e ao assumir os riscos nesta situação totalmente desprovida de garantias, e ao transmitir a promessa de Deus à viúva e confiar que Deus há de cumpri-la, não somente a mulher necessitada e a sua família são alimentadas, mas também o próprio Elias experimenta a provisão de Deus para suas necessidades!
A palavra bíblica vai chegando ao meu coração em pequenas doses. Mas doses altamente significativas: E aconteceu que... a comida durou muito tempo... para Elias... e para a mulher... e sua família... a farinha na vasilha não se acabou... e o azeite na botija não se secou... conforme a palavra do Senhor proferida por Elias.
Esse é o jeito de Deus agir, totalmente imprevisível e contrário às nossas expectativas!
É incrível como Deus me confortou com esta história. Ele me diz que SIM. Que nós, os servos e “profetas” do Senhor, podemos passar por muitos momentos em que sentimos como se não nos restasse mais nada, quando parece que não há mais forças (nem físicas, nem emocionais), nenhum recurso disponível a não ser “um punhado de farinha e um pouquinho de azeite”, nenhuma outra alternativa senão “colher uns dois gravetos, preparar uma refeição para mim e para o meu filho, comer e morrer” (v. 12). Nessas horas, não nos sentimos nem um pouquinho diferente de qualquer “viúva” ou “órfão” que pensávamos dependerem de nossa ajuda. Estressados, esgotados, arrasados, inúteis! No entanto, SIM, nós também (e não apenas “a viúva”) podemos contar com a promessa divina: Deus proverá! Ele proverá o necessário para cada dia, e por muito tempo, enquanto for necessário! Ele conhece, e valoriza, os poucos recursos que temos; e promete que “a farinha da nossa panela não se acabará” e “o azeite na nossa botija não se secará”! Ele há de prover para nós e para aqueles que dependem de nós! E finalmente, garante-nos que não irá falhar, pois Ele cumpre sua promessa.
Deus é tão imprevisível e tão misericordioso que é capaz de suprir as nossas necessidades mais profundas tirando recursos de onde menos se poderia imaginar, como fez com Elias usando aquela viúva em Sarepta, ou como me ensinou em Rakai através do encontro com a pequena Maria. Só para arrancar o “controle” de nossas mãos e colocar-nos em nosso devido lugar, a fim de que jamais esqueçamos que Ele é Deus e que nós não o somos. Ele é o Senhor e nós, apenas seus mordomos. A Ele pertencem e dele provêm todos os recursos que necessitamos. Ele cuida de nós agora e continuará cuidando “até o dia em que o Senhor fizer chover sobre a terra”. E a sua chuva cairá igualmente sobre profetas, viúvas e órfãos, no tempo de Deus e do jeito dele, para que só a Ele seja dada a glória da sobrevivência e da vitória sobre a provação.
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Publicado originalmente na Revista Ultimato, ed. 281
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