COMIBAM '97
Acapulco, México.
Exposições devocionais
Muitos dos nossos congressos e eventos começam o seu programa, pela manhã, com um tempo que chamamos devocional. Este tempo tem dois componentes básicos. Um deles é o canto, como expressão da nossa adoração ao Senhor Jesus e do nosso compromisso com a sua causa. O segundo é o encontro com a Palavra de Deus. Neste momento abrimos a Bíblia como expressão da necessidade que temos de sermos alimentados e orientados por esta palavra. Se o primeiro momento é dominado pela nossa palavra, expressa no canto, o segundo momento é tomado pela escuta. Nesse momento a nossa palavra se cala e os nossos ouvidos se abrem. É tempo nobre para a escuta da palavra de Deus. Pois, é dessa palavra que nos alimentamos. É nela que nos orientamos. É por ela que nos tornamos corpo e é através dela que percebemos a nossa vocação.
Também neste Comibam’97 queremos iniciar o programa de cada dia com este tempo de adoração e escuta. Tempo de palavra cantada e de silêncio, no qual queremos ser ministrados por Deus através do seu Espírito, que nos relembra da sua Palavra.
Para este tempo de escuta eu escolhi como roteiro o texto da vocação de Moisés. Há, neste texto, indicadores missiológicos fundamentais que nos ajudam a agudizar a percepção, a motivação e o delineamento da nossa vocação e dos nossos caminhos de obediência missionária, num mundo as portas de um novo milênio.
Não vou fazer uma exegese clássica e técnica do texto. Não me sinto, portanto, compelido a detalhar aspectos difíceis do texto e que não são poucos. Quero, isso sim, conversar com a experiência de Moisés, no objetivo de que ele nos ensine a entender o que significa ser vocacionado para a missão, qual o custo dessa vocação e como se responde a ela.
I. QUEM ÉS TU, Ó DEUS?
Vendo o Senhor que ele se voltava para ver, Deus, do meio da
sarça, o chamou e disse: Moisés, Moisés...
Disse Moisés a Deus: Eis que quando eu vier aos filhos de Israel e
lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós outros; e eles
me perguntarem: Qual é o seu nome: Que lhes direi? Disse Deus
a Moisés: EU SOU o que SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos
de Israel: Eu SOU me enviou a vós outros. Disse Deus ainda mais
a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel: O Senhor, o Deus de
vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de
Jacó, me enviou a vós outros; este é o meu nome eternamente, e
assim serei lembrado de geração em geração. Vai, ajunta os
anciãos de Israel, e dize-lhes: O Senhor, o Deus de vossos pais,
o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, e o Deus de Jacó, me
apareceu, dizendo: Em verdade vos tenho visitado, e visto o que
vos tem sido feito no Egito. Portanto, disse eu: Far-vos-ei subir
da aflição do Egito para a terra do cananeu, do heteu, do
amorreu, do ferezeu, do heveu e do jebuseu, para uma terra que
mana leite e mel. E ouvirão a tua voz; e irás, com os anciãos de
Israel, ao rei do Egito, e lhe dirás: O Senhor, o Deus dos hebreus,
nos encontrou. Agora, pois , deixa-nos ir caminho de três dias
para o deserto, a fim de que sacrifiquemos ao senhor nosso Deus.
(Êx 3. 4;13-18)
A missão é MISSIO DEI!
Moisés havia estado naquele lugar muitas vezes. E muitas vezes não é, aqui, uma figura de linguagem. Ele conhecia o monte Horebe como a palma de suas mãos. Os declives ele os havia apreciado e as rochas ele as havia examinadas. A monotonia do cuidado pastoril lhe havia dado um enorme tempo ocioso para estudar panoramas e detalhes.
Que arbustos secos pegassem fogo nesse desértico e cansativo cenário não era difícil de entender. Mas uma sarça que ardia e não se consumia, ele nunca havia visto. Então, como diz o texto, Moisés “disse consigo mesmo: Irei para lá, e verei essa grande maravilha, porque a sarça não se queima.” (Ex 3.3). E a vida de Moisés nunca mais seria a mesma. Pois, afinal, ele caminhou ao encontro de um transformador encontro com Deus. Muitos tem sido, no decorrer da história de Deus com o seu povo os instrumentos e jeitos por ele usados para se comunicar com a sua criatura e seu povo. Ora esse encontro se dá, de forma solene no “santuário do Senhor” (Lc 1.9), como foi o caso de Zacarias. A Maria o anjo pode bem te-la encontrado na cozinha de sua casa. Ezequiel está entre os exilados quando os céus se abrem e ele tem visões de Deus (Ez 1.1). Pois com Moisés Deus fala desde uma sarça em chamas.
Quando Deus chama, os limites do tempo e do espaço se tornam relativos e vulneráveis. Os céus se abrem, as visões se instalam, os sonhos recobram sentido e a sarça queima sem ser consumida. Quando Deus vem todos os recursos se põe a sua disposição, tornando-se absolutamente claro que é dele a iniciativa e que não há nenhuma participação de nossa parte nesta sua revelação, com a exceção da nossa obediência. Quando, pois, falamos de missão estamos, em primeiro lugar falando de Deus porque a missão é MISSIO DEI. É missão de Deus. É iniciativa de Deus. É diagnóstico de necessidade que parte de Deus. E, é vocação que vem de Deus e é cumprida em nome de Deus.
“EU SOU o que SOU”
A reação de Moisés, assim se poderia pensar, é natural. Afinal, se ele está sendo enviado para uma missão, ele precisa saber com clareza quem o está enviando. Ele precisa saber o nome de quem o envia. E assim, Moisés pergunta pelo nome de quem o envia.
A resposta de Deus indica que as coisas não são bem assim. Deus, afinal, não tem nome. Ninguém lhe pode por nome. Ou seja, é Deus quem nos dá nome. É dele que recebemos o nosso nome e pelo nosso nome ele nos conhece.
Dar nome a algo ou alguém é um ato de senhorio. Exercício de soberania, como fica expresso em Gn 2.20 quando o homem dá nome “a todos os animais domésticos, às aves dos céus, e a todos os animais selváticos”. Como poderia, então, Moisés chamar a Deus pelo nome? É Deus, pelo contrário, que chama a Moisés pelo nome: “Moisés, Moisés! Ele respondeu: Eis-me aqui.” (Êx 3.4)
Quando, pois, Moisés pergunta pelo nome de Deus a resposta que ele recebe é que Deus é o que é. É DEUS. É dele a iniciativa porque é dele o senhorio e a soberania. Tudo e o suficiente, que Moisés tem a dizer, pois, aos filhos de Israel é “EU SOU me enviou a vós outros” (Êx 3.14).
Num primeiro momento, sair em missão a serviço de um Deus sem nome gera insegurança. Vai contra a nossa natureza que gosta de exercer domínio sobre as coisas e controle sobre o que faz. É por isso que, por vezes, tratamos a missão como coisa nossa e falamos de Deus como se tivéssemos controle sobre ele. Mas, nesse caso, o nosso deus seria muito pequeno. Ele caberia, inclusive, no domínio da nossa linguagem e dos nossos símbolos. Quando, pois, Deus se nega a ser nominado por nós ele está não apenas se negando a entrar no nosso jogo controlador mas está nos resguardando. Afinal, se o nosso deus não é maior do que a nossa capacidade de nominá-lo e defini-lo o que não faria Faraó conosco e que respeito ele teria para com o nosso Deus.
O Deus EU SOU é, portanto, a nossa garantia. O resguardo de Deus de sua soberania e do seu senhorio não é o nosso enfraquecimento mas a nossa força. Força que é dele e com a qual ele nos agracia de conformidade com a necessidade que se apresenta; “Toma, pois, esta vara na mão, com a qual hás de fazer os sinais” (Êx 4.17), diz Deus a Moisés, capacitando-o para a sua tarefa.
“EU SOU o Deus de vossos pais”
Que Deus se defina como EU SOU não o transforma num Deus distante e abstrato. Um ser filosófico que não se deixa definir. Pelo contrário, a história da atuação de Deus se deixa perceber e contar na história do próprio povo de Israel. Aliás, esse povo só existe porque Deus assim o quis. O povo só subsiste porque Deus dele não se esqueceu. E, este povo tem futuro porque Deus continua tomando a iniciativa quanto a ele. Deus pois, se revela, se dá a conhecer na história. Ele se torna tão concreto ao ponto de nos instrumentalizar para a construção do seu reino e se dar a conhecer no desenrolar dos acontecimentos da nosso própria vida.
Ao se dirigir, pois, ao povo de Israel, Moisés estará lembrando a esse povo tanto de Deus como da sua própria história. O encontro com essa história passa a ser o convite para o encontro com Deus e com o futuro. É o Deus de Abraão, Isaque e Jacó que quer libertar o povo de Israel do Egito. É esse Deus que lhes faz a promessa de uma nova terra e de uma nova cidadania.
Ao chegar ao final dessa nossa conversa de hoje, com a experiência de Moisés nos damos conta, de forma renovada, do quanto a missão é Missio Dei. E, graças a Deus por isso. Porque é somente sendo de Deus que ela pode ser missão de esperança. Missão que traz ao futuro uma coloração de novidade de vida...de terra que mana leite e mel.
O texto no entanto nos lembra também da força e da radicalidade do chamado de Deus. Quando, pois, Deus nos chama, tudo o que nos resta fazer é tirar as sandálias dos nossos pés. É por isso que missão se faz de pés descalços. E, até disso Moisés precisa ser lembrado: “tira as sandálias dos pés, porque o lugar em que estás é terra santa”, diz o Senhor.
II. QUEM SOU EU, Ó DEUS?
Então disse Moisés a Deus: Quem sou eu para ir a Faraó e tirar
do Egito os filhos de Israel? Deus lhe respondeu: Eu serei contigo;
e este será o sinal de que eu te enviei: depois de haveres tirado o
o povo do Egito, servireis a Deus neste monte...
Respondeu Moisés: Mas eis que não crerão, nem acudirão à minha
voz, pois dirão: O senhor não te apareceu. Perguntou-lhe o Senhor:
Que é isso que tens na mão? Respondeu-lhe: Uma vara. Então lhe
disse: Lança-a na terra. Ele a lançou na terra, e ela virou cobra e
Moisés fugia dela. Disse o Senhor a Moisés: Estende a mão, e
pega-lhe pela cauda (estendeu ele a mão, pegou-lhe pela cauda, e
ela se tornou em vara); para que creiam que te apareceu o Senhor,
Deus de seus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque e o Deus
de Jacó (Ex 3.11-12; 4.1-5).
Houve quem, conforme o relato dos evangelhos, se achasse pronto para o seguimento a Jesus. Um, de forma eloquente, se ofereceu para fazer parte do grupo: “Seguir-te-ei para onde quer que fores”. Outro também expressou desejo similar, ainda que condicionado: “Seguir-te-ei, Senhor; mas deixa-me primeiro despedir-me dos de casa”. A ambos no entanto, Jesus respondeu com uma palavra quanto ao preço do discipulado. Ao primeiro ele expôs as condições deste caminho, onde não se tem “onde reclinar a cabeça” e ao outro ele deixou claro que esta opção não se pode fazer de forma dividida: “Ninguém que, tendo posto a mão no arado, olha para trás, é apto para o reino de Deus.” (Lc 9.57-62). O fato é que no caminho para o discipulado não há espaço para o auto-oferecimento. A este só se vai vocacionado, convocado...assustado.
Uma das importantes leituras bíblicas tem a ver com a reação de homens e mulheres quando alcançados pelo chamado de Deus. A reação é inevitavelmente de susto e desestabilização. Pedro se descobre pecador (Lc 5.8). Isaías, em reação similar, geme pelo seu pecado e pelo do seu povo (Is 6.5). Jeremias, em estado de susto, regride ao estado infantil: “Ah! Senhor Deus! Eis que não sei falar; porque não passo de uma criança”(Jr 1.6). Mas, me parece que Moisés é o campeão da relutância. Em argumento após argumento ele tenta escapar do cerco de Deus.
Numa primeira reação, Moisés tenta desqualificar a si mesmo e a sua falta de autoridade; “Quem sou eu para ir a Faraó e tirar do Egito os filhos de Israel?” (Ex 3.11). Mas Deus, em resposta, diz que ele o capacitará. Numa segunda tentativa, ele diz que não sabe exatamente a quem representar e Deus lhe reveste das suas próprias credenciais, como vimos anteriormente. Num terceiro momento Moisés diz que a sua história será colocada sob suspeita e a sua palavra não receberá crédito: “mas eis que não crerão, nem acudirão a minha voz, pois dirão: O Senhor não te apareceu”(Ex 4.1). E Deus, uma vez mais o instrumentaliza com poderes milagrosos. Numa quarta tentativa, Moisés se revela “pesado de boca e pesado de língua” (Ex 4.10). E Deus lhe garante que àquele que o criou cuidará tanto da sua boca como da sua palavra. E, com surpreendente resistência, Moisés tenta ainda uma quinta vez escapar da sua vocação. Em linguagem popular ele diz para Deus enviar a qualquer um menos a ele: “Ah! Senhor! Envia aquele que hás de enviar, menos a mim.”(Ex 4.13).
Mas Deus não desiste de Moisés. Irado, ele termina a conversa dizendo a Moisés que Arão falará por ele e que a vara em sua mão será o seu instrumento de sinais. E acabou a história. A escolha que Moisés tem é dizer sim ou dizer sim. Pois, entre o chamado de Deus e a resposta humana, como nos ensinou Dietrich Bonhoeffer há lugar somente para a obediência.
Eu gostaria de sugerir que o texto da vocação de Moisés é importante para os nossos dias. Ele traz à nossa memória aspectos estrategicamente esquecidos nesta nossa época quando buscamos por vocações mais participativas e de resultados mais fáceis.
É Deus quem chama!
De fato, na história do testemunho bíblico as pessoas nunca estão preparadas para a missão com a qual Deus lhes incumbe. A vocação não vem com hora marcada. Ela vem de surpresa e é recebida com surpresa. Ela vem como um pacote pronto ao qual nada se pode agregar e ao qual não se pode negociar. E disso nós não gostamos. E contra isso nos protestamos. Nós, afinal, queremos ser co-participes da nossa vocação. Senão, como vamos poder fazer a pergunta do nosso tempo: mas eu, afinal, o que ganho com isso?
O privilégio da obediência
O que nós ganhamos com a nossa vocação é o privilégio da obediência; o que não deixa de ser contraditório. Em primeiro lugar nós precisamos agradecer que Deus não nos deixa ser co-participes da nossa vocação. Se isso fosse assim, há muitos lugares que nunca seriam lembrados e muitas causas que nunca seriam abraçadas. Pois, os nossos critérios de escolha seriam marcados pela busca de visibilidade, status, reconhecimento e recompensa. E, segundo esses critérios, porque alguém iria quere se meter a libertar a um povo desagregado e escravo, como era o povo de Israel no Egito? Ou, na linguagem do Novo Testamento, seríamos como Pedro brigando com Jesus para que não fosse à cruz. Em segundo lugar, porque nós não temos nada a oferecer. Ou seja, tudo o que temos a oferecer tem a marca da queda. Somos como Moisés que antes dessa sua vocação tinha a oferecer apenas a sua culpa pelo egípcio que ele havia assassinado, numa tentativa de estabelecer uma estratégia libertadora que teve vida absolutamente curta. Ou, voltando a uma imagem do Novo Testamento, tudo que temos a oferecer é, como Pedro, a orelha decepada de um soldado. E isso é desastrosamente pouco. Damos, pois, graças a Deus que ele não nos permite participar na gestação da nossa vocação. Pois só assim há esperança para o povo de Israel e a Igreja.
O fato de Moisés experimentar a sua vocação como um pacote pronto não significa que ele não participa dela ou que a concretização da mesma possa se dar de maneira leve e simples. Pelo contrário, a vocação altera a vida com uma profundidade inimaginável e, por vezes, assustadora. Não é a toa, pois que Moisés está tão assustado e tenta, de todas as maneiras, escapar da mesma. Como o vemos na vida do próprio Moisés este chamado de Deus exigiu todo o resto da vida dele e em níveis inimagináveis. Não haveria mais descanso e nem hora para dormir. Não haveria solução fácil para os desafios emergentes e não haveria respostas prontas para as perguntas que insistiriam em serem repetidamente formuladas. Mas Moisés morre um homem feliz e realizado... mesmo sem ter entrado na terra prometida. Moisés morre como um íntimo de Deus e esta é a maior realização que uma pessoa pode alcançar. Obedecer é, pois, um rico privilégio.
Bem-vinda inadequação
Eu termino, essa conversa falando da inadequação. Por vezes, corremos o risco de pensar na vocação missionária como uma entrevista de emprego. Para ela tomamos banho e usamos desodorante. Penteamos o cabelo e colocamos roupa limpa. Treinamos respostas e nos munimos do nosso currículo. Diante da visitação de Deus, no entanto, tudo isso desaparece. O desodorante não faz efeito diante da grande quantidade de suor. As nossas respostas são esquecidas enquanto balbuciamos qualquer coisa. E o nosso currículo...Bem, este evapora. A reação mais comum a esta “entrevista com Deus” é a consciência da nossa completa inadequação. E esta é a melhor resposta possível; pois indica a necessidade de sermos absolutamente capacitados para o cumprimento da nossa vocação. Saudar como bem-vinda a inadequação é, pois, um bom começo de resposta a surpresa da nossa vocação.
III. OUÇA O CLAMOR, Ó DEUS!
Disse ainda o Senhor: Certamente vi a aflição do meu povo, que
está no Egito, e ouvi o seu clamor por causa dos seus exatores.
Conheço-lhes o sofrimento, por isso desci a fim de livrá-lo da mão
dos egípcios, e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa
e ampla, terra que mana leite e mel; o lugar do cananeu, do heteu,
do amorreu, do ferezeu, do heveu e do jebuseu. Pois o clamor dos
filhos de Israel chegou até mim, e também vejo a opressão com que
os egípcios os estão oprimindo. Vem, agora, e eu te enviarei a Faraó,
para que tires o meu povo, os filhos de Israel, do Egito (Ex 3.7-10).
Por muitos anos o livro de Êxodo foi a coqueluche de muitos exegetas, especialmente àqueles vinculados à Teologia da Libertação. Se fazia então, é claro, uma leitura política da experiência de libertação do povo de Israel.
No mundo evangélico essa exegese não era aceita e havia uma rejeição profunda a interpretação política que se dava à própria experiência do êxodo. Ademais, com a crise da Teologia da Libertação também irrompeu o silêncio quanto a esta experiência libertadora do povo de Israel. O fato é que o texto é explícito quanto a realidade de sofrimento e opressão, na qual o povo vivia, e quanto a intenção libertadora a qual Deus anuncia a Moisés. E, da interpretação disso não há como fugir.
Há quatro dimensões do texto as quais eu gostaria de me referir. Em primeiro lugar, o texto nos fala de uma particularidade de Deus. Ele vê, ouve e conhece. Três categorias fundamentais de sensibilidade e relação. Deus não apenas se revela, dando-se a conhecer, mas ele instrumentaliza esta revelação em favor de homens e mulheres, povos e nações. Ou seja, ele vocaciona Moisés para que, através dele, Deus possa atuar em favor do povo de Israel.
Muitas vezes pensamos em Deus de forma distante e abstrata mas neste texto ele é descrito de forma chegada e sensível. É de enorme importância que Deus vê, ouve e conhece. Afinal, todos sabemos o quanto é difícil ter olhos para ver e ouvidos para ouvir o gemido e a dor do mundo. Sabemos o quanto evitamos entrar em contato com as realidades mais difíceis da vida humana. O quanto é complicado olhar nos olhos do outro, ouvir as suas histórias mais sofridas e conhecer a perplexidade que caracteriza a vida de tantos. Pois o texto nos diz que Deus vê a aflição, ouve o clamor e conhece o sofrimento. Deus entra em contato com a face mais difícil da vida. Ele vê aquilo do que desviamos os nosso olhos. Ouve aquilo para o que nos fazemos surdos e conhece o que procuramos ignorar. E disso nos fala não apenas o livro de Êxodo, mas toda a Bíblia.
Em segundo lugar, o texto nos diz que Deus também vê, ouve e conhece os egípcios. Mas o faz de outra perspectiva, pois estes são qualificados e exatores e opressores. São a causa da aflição, clamor e sofrimento do povo de Israel. Enquanto para os filhos de Israel o olhar de Deus significa misericórdia, para o povo egípcio ele significa juízo. Juízo que se delineia em função do tipo de relacionamento que eles estabeleceram com àqueles a quem escravizaram. Me parece ser tão importante estabelecer essa ponte entre a relação humana e o olhar de Deus. Em outras palavras, se poderia dizer que é não somente impossível estabelecer uma relação de reverência para com Deus que não se expressa no carinho para com o outro mas também é impossível dizer-se amante de Deus sem querer aprender a olhar o mundo com os olhos de Deus. Mas é também importante perceber que a nossa relação com o outro vai determinar o jeito que Deus nos olha. Aos filhos de Israel Deus vai libertar mas aos egípcios ele vai julgar.
Em terceiro lugar existe a promessa de uma nova terra, descrita de forma apetitosa e a indicar a mudança. Da aflição para a liberdade, do clamor para o cântico e do sofrimento para o shalom, estado de paz a saúde que simboliza o bem estar com e em Deus. Por vezes a promessa pode se tornar em ilusão ou escapismo. Mas quando acompanhada da intervenção de Deus ela se transforma em força para a caminhada rumo à terra prometida.
Em quarto lugar está a instrumentalização de Moisés da parte de Deus. Depois de descrever a situação do povo e anunciar o seu plano de libertação, Deus convoca Moisés para a instrumentalização desta mesma libertação: “Vem, agora, e eu te enviarei a Faraó, para que tires o meu povo, os filhos de Israel, do Egito” (Êx 3.10). E, é então que começa a choradeira de Moisés. Ele deve ter percebido o que estava diante dele.
Eu estou lendo este texto no contexto deste evento porque, assim me parece, ele nos ajuda a responder a pergunta pelo porque da missão. Pois, através da experiência de Moisés podemos dizer que a missão é a instrumentalização da igreja para a experiência com e a vivência do shalom de Deus. Esta instrumentalização nasce por iniciativa de Deus e se expressa numa ação histórica que tem cunho tanto pessoal como coletivo, relacional como político, material como emocional. E é profundamente espiritual na medida em que é iniciativa de Deus, intermediada pela ação de Deus e cumprida pela concretização da promessa de Deus.
Na linguagem do Novo Testamento poderíamos dizer que é isto que se concretiza em Jesus e através de Jesus conforme a descrição de Lc 4.17-18, com a descrição do famoso “programa de Nazaré”. E, no cumprimento do seu ministério Jesus vê, ouve e conhece os pobres, os fracos, as crianças no objetivo de compartilhar com eles o shalom de Deus e anunciar-lhes a promessa do Reino de Deus. É essa, pois, também a nossa missão como igreja. Como alvos da vocação de Deus nos dispomos, em vulnerabilidade, a nos colocar a serviço do Reino de Deus, vendo, ouvindo e conhecendo a dor do mundo na perspectiva da salvação em Cristo Jesus. Assim, é o grito do corpo e o suspiro d’alma que querem alcançar os ouvidos da missão. Pois, eles já alcançaram o ouvido de Deus.
IV. DEIXA-ME IR!
Saindo Moisés, voltou para Jetro, seu sogro, e lhe disse: Deixa-me
ir, voltar a meus irmãos que estão no Egito para ver se ainda vivem.
Disse-lhe Jetro: Vai-te em paz. Disse também o Senhor a Moisés em
Midiã: Vai, torna para o Egito, porque são mortos todos os que
procuravam tirar-te a vida. Tomou, pois, Moisés a sua mulher e a
seus filhos; fê-los montar num jumento, e voltou para a terra do
Egito. Moisés levava na mão a vara de Deus (Ex 4. 18-20).
Quando, enfim, Moisés volta dessa temporada de pastoreio da ovelhas, ele é um homem completamente mudado. Irreconhecível no seu silêncio meditativo. Mesmo antes que as palavras pudessem falar da sua experiência no deserto, as pessoas mais íntimas a ele já sabiam que algo lhe havia acontecido. Mas, do que lhe passou Moisés parece não falar com os seus familiares em Midiã.
Aliás, os argumentos arrolados a seguir, parecem nada ter a ver com a experiência de Moisés no deserto, junto ao monte Horebe. Lá o assunto foi o clamor e a libertação do povo de Israel. Agora o assunto passa a ser tanto a sua própria família quanto a sua segurança pessoal. Mas Deus não está ausente desse processo. Se a Jetro Moisés pede autorização para ir ver se seus irmãos ainda vivem, Deus lhe diz, agora em Midiã, que àqueles que procuravam matá-lo já haviam morrido. Ou seja, Moisés pode voltar em segurança.
É difícil conjeturar acerca dessa mudança de assunto. Dar-se-ia ela por motivos estratégicos? Nesse caso Moisés não poderia compartilhar com Jetro, seu sogro e sacerdote midianita, a vocação que lhe havia atingido ali no monte Horebe, enquanto cuidava do rebanho. A libertação de Israel ainda seria segredo político ao qual nem a sua esposa parece ter acesso. Ou, os motivos poderiam ser espirituais. Nesse caso Jetro, que era sacerdote de outra expressão religiosa não entenderia as razões de Moisés e o melhor seria calar. A primeira pessoa a saber toda a história será Arão. Pois ele afinal, também não terá outra alternativa senão seguir caminho, com Moisés, ao Egito.
Mas há também um outro jeito de olhar esse texto. Um jeito muito humano. Toda essa experiência da vocação havia relembrado Moisés da sua identidade, sua história e dos seus vínculos de pertencimento familiar. Afinal, por quarenta anos Moisés havia estado longe da sua família e do seu povo. Nesses quarenta anos, se poderia arriscar dizer, Deus não havia esquecido de Moisés mas Moisés não havia se lembrado tanto de Deus. Ele vivia cercado de outra gente que expressava a sua fé em outros deuses. Essa outra gente era agora a sua própria gente; seu sogro e sua mulher. Aliás seu próprio filho era fruto dessa mistura étnica e religiosa na qual Moisés havia mergulhado de ponta cabeça.
A história de como Moisés chegou a esta experiência de vida é conhecida de todos nós. Mas o fato é que quarenta anos depois muitas das histórias do passado e dos vínculos de origem haviam sido postos a dormir em razoável estado de profundidade. Mas agora, tudo isso voltou a tona e Moisés tem nova consciência de quem ele é e a quem ele pertence. Moisés experimenta algo que ele já havia esquecido; a saudade.
Mas ao mesmo tempo Moisés tem medo. Medo do que lhe possa acontecer quando voltar. As memórias dos seus atos e da sua fuga também voltam e ele se torna inseguro. A sua saudade se torna confusa até que o próprio Deus lhe assegura que os seus perseguidores já haviam morrido.
Ao apreciarmos esses eventuais detalhes da vida de Moisés, ele se torna muito humano e chega perto da nossa experiência de vida. Da nossa saudade e dos nossos medos. Dos nossos vínculos e das nossas relações misturadas. Assim, o próprio Moisés começa a articular o caminho da sua obediência com muita cautela, começando por querer voltar para casa.
Das diferentes possibilidades de cenário no entanto, emerge um Moisés amadurecido no que ele precisa fazer. Consciente de que precisa dar passos concretos de obediência. Consciência, também, de que ele já não pode ficar cuidando de rebanho mas precisa retomar o fio da sua história.
É esse Moisés amadurecendo a sua vocação que se aproxima de Jetro e lhe diz “Deixa-me ir” e que toma “a sua mulher e a seus filhos” e segue rumo ao Egito. Rumo ao cumprimento da sua vocação.
Nesse momento da nossa caminhada missionária, como povo de Deus na América Latina nós precisamos desse exercício da obediência. Exercício esse do qual destaco três componentes:
a. Ter clareza quanto a vocação, que se testa pelo estado de estupefatação. Quem sabe se poderia dizer que quanto mais assustado com a vocação alguém está, tanto mais autentica ela pode ser. E quanto mais inadequados nos sentirmos tanto mais prontos podemos estar para o caminho da obediência.
b. Amadurecer a vocação, integrando-a a história da vida e construindo as pontes necessárias com o passado e as relações presentes é importante. Moisés não desaparece de casa. Ele entra em contato com o seu sogro, gesto fundamental na sociedade da época, assume a sua família e a integra no exercício da sua vocação. Ademais, ele trabalha uma estratégia de comunicação e compartilhamento a qual o seu sogro responde com um surpreendente “vai-te em paz”.
c. A obediência é a única resposta viável à vocação. Qualquer outra resposta implica em desobediência. Este caminho da obediência, no entanto, é também o caminho para a intimidade com Deus bem como para a verdadeira realização humana. Quem passou pela experiência da vocação já não pode abraçar outro destino. Isto não significa dizer que este caminho é fácil. Pelo contrário, ele é raramente fácil e geralmente complicado. Moisés que o diga. Mas não deveria ser novidade para nós que fomos vocacionados para a obediência e não para o sucesso.
E, por último eu quero destacar este cuidado que Deus tem com o seu vocacionado e a maneira como ele cuida dele. Mesmo que sejamos enviados “como cordeiros no meio de lobos” como o evangelista Lucas (Lc 10.3) o registra, a nossa sobrevivência está garantida pelo pastor que nos envia. No caso de Moisés, é interessante observar como a “vara de Deus” o acompanha. Assim que Moisés não leva consigo apenas a mulher e os filhos mas também esta vara que Deus lhe deu. E esta vara, ele a leva em sua mão, como o texto o registra com particular detalhamento.
A vara não é apenas a memória da sua vocação mas especialmente a garantia do cuidado e da capacitação de Deus. Sem a vara Moisés será engolido por Faraó. Mas com a vara na mão de Moisés, Faraó será constantemente lembrado de que Moisés fala em nome de Deus. Eu, de minha parte não estranharia se, cansado da presença de Moisés, Faraó tivesse murmurado, num dia desses, “lá vem o homem da vara novamente”. E lá vinha Moisés com a vara na mão. Ninguém precisa e nem deve ir ao campo de missão sem a vara na mão. E essa vara, na linguagem do Novo Testamento se chama Espírito Santo.
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