top of page
Logomarca EntreLinhas
  • Foto do escritorValdir Steuernagel

De cabeça para baixo... A busca pelo evangélico continua

O toque de Jesus!

O ano era 1980. Eu já havia andado um pouco pela América Latina, mas nunca tinha saído do continente. Além disso, eu conseguia sobreviver ao espanhol; mas o inglês, que eu precisaria naquela viagem e no congresso, era "desse tamanho"... Dava quase para passar fome. Mas eu não queria perder o convite e a oportunidade. E lá fui eu, rumo à Tailândia, participar da Consulta sobre Evangelização Mundial, promovida pelo movimento de Lausanne.


A consulta reuniu um bocado de gente dos mais variados lugares. Havia gente que eu conhecia e pessoas com as quais eu me relacionava; mas eu, neófito naquele mundo e na dinâmica daquele tipo de evento, confesso, estava meio perdido. A experiência foi importante para mim, mas do evento eu não consegui aproveitar muita coisa (aliás, o evento não foi lá essas coisas). Há uma cena, no entanto, que permanece comigo, apesar dos anos.


Numa das noites, no programa, apresentaram um filme sobre a vida de Jesus. Eu não conseguia entender muita coisa, mas a presença e o movimento de Jesus não careciam de muitas palavras. E então veio aquela cena. Ela falava por si: ei-lo chegando, num caminhar cheio de graça. Era ele: Jesus. Ao cruzar com um menino --um menino qualquer-- a sua presença, o seu olhar e o seu toque foram simplesmente enternecedores. Palavras? Para que palavras? Um simples "olá" foi pronunciado. E este bastava. A sua presença era suficiente. A sua graça, amor e disponibilidade, comoventes. Pois foi através daquela cena que eu, envolto em discreta emoção, me senti e me soube tocado por Jesus. Cativado por quem ele é. Conquistado por esta sua presença, disponibilidade e amor.


Reencontrando o Jesus dos Evangelhos

Eu tenho lá a minha convivência com o relato dos Evangelhos. São eles que nos testificam acerca do ministério de Jesus. Há nos seus relatos uma enormidade de significados, detalhes e encantos. No entanto, um dos detalhes que constantemente me encanta é o sentido da profunda humanidade de Jesus: o seu jeito de se aproximar e receber as pessoas, a sua presença e disponibilidade ativa, o seu carinho, a sua percepção para a necessidade das pessoas, o seu respeito para com a história e o sentimento de cada um, o seu discernimento das motivações e intenções das pessoas.


É tão fácil recordar cenas e detalhes! Podemos nos lembrar, por exemplo, daquelas mães que queriam fazer chegar os seus filhos a Jesus. Os discípulos não perceberam isso como sendo prioridade e tentaram dificultar aquele encontro. O que foi que Jesus fez?

"Jesus, porém, vendo isto, indignou-se e disse-lhes: Deixai vir a mim os pequeninos, não os embaraceis, porque dos tais é o reino de Deus" (Mc 10.14).

Poderíamos citar, ainda, o cego de Jericó, sentado à beira do caminho e clamando por compaixão:

"Jesus, Filho de Davi, tem compaixão de mim!" (Lc 18.38).

O pessoal do protocolo, assim se poderia dizer, tratava de calar o cego inconveniente; mas Jesus ouviu o seu clamor e teve tempo para ele:

"Então parou Jesus e mandou que lho trouxessem. E, tendo ele chegado, perguntou-lhe: Que queres que eu te faça?" (versos 41-42a).

Ao analisarmos o ministério de Jesus, no relato dos Evangelhos, percebemos uma espécie de linha de conduta ministerial. Ele gasta um tempo e uma energia significativos com aqueles que não sabem, não podem e não têm. Os necessitados e destituídos. Os pobres e enfermos. As crianças. Os possessos. Em uma palavra: os perdidos. Os que se sabem perdidos. O próprio Jesus expressa esta sua vocação ministerial assim:

"Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido" (Lc19.10).

É a eles que Jesus dedica um tempo significativo do seu ministério. Poderíamos tentar resumir esse estilo de vida e essa atitude ministerial de Jesus dizendo que ele vive para o outro e encontra o outro "lá embaixo", na necessidade... seja do pão, do abraço ou da salvação.


Jesus se relaciona com as pessoas marcado por uma atitude de amor que serve. Isso chega a ser verbalizado pelos Evangelhos. No encontro de Jesus com o jovem rico se diz que Jesus "fitando-o, o amou" (Lc10.21). Quando confrontado com a sede de poder do núcleo familiar básico de Tiago e João, Jesus transforma em linguagem o que ele vivia a nível de ministério:

"Pois o próprio Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Lc 10.45).

Jesus encarna um tipo de vivência messiânica que teima em transformar o rancho da manjedoura no palácio real. Este é, por assim dizer, o Reino de cabeça para baixo... no bom sentido, é claro.


A vocação da igreja é seguir a Jesus

Mas, afinal, por que estou falando tudo isso? Por uma simples razão: a igreja não tem outra coisa a fazer senão deixar-se determinar, no exercício do seu ministério, pelo próprio Jesus. Ou seja, o caminho cristão é o caminho do discipulado. Este, por sua vez, tem o seu conteúdo e concretização determinados pelo seguimento a Jesus. Ao sermos discípulos de Jesus, nós somos vocacionados e seguir os passos dele. Para tornar a nossa vida cristã concreta nós nos inspiramos no que Jesus fez e disse. Após lavar os pés dos seus discípulos, antes da sua prisão e crucificação, o próprio Jesus formulou isso de forma muita clara:

"Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. Em verdade, em verdade vos digo que o servo não é maior do que seu senhor, nem o enviado maior do que aquele que o enviou. Ora, se sabeis estas cousas, bem-aventurados sois se as praticardes" (Jo 13.15-17).

É necessário, portanto, que a igreja se auto-avalie, se pergunte sempre novamente e a cada geração se ela está sendo fiel ao Cristo na sua vivência da fé. Se ela está encarnando o modelo do discipulado de Jesus no exercício individual e coletivo desta fé. Se ela está sendo evangélica no conteúdo e na pedagogia do seu ensino. Se ela está sendo fiel ao Cristo dos Evangelhos na sua prática evangelizadora.

Estar consciente destas perguntas e ter a coragem de trabalhá-las me parece ser um exercício essencial, neste momento, para este segmento da igreja que se tem chamado de evangélico e que tem experimentado um crescimento tão fantástico nestas últimas décadas. Ademais, os últimos acontecimentos envolvendo a Igreja Universal do Reino de Deus tornam este exercício ainda mais imperativo. É por isso que eu, no subtítulo deste artigo, digo que a "busca do evangélico continua". E estabeleço, desta maneira, uma continuidade com o meu artigo anterior, que se intitulava "O Zelo de Deus, o Joio e o Trigo - Evangélicos em busca do Evangélico".


Crescer é bom, mas...

Uma das dificuldades que a assim chamada igreja evangélica tem em responder a pergunta acerca do modelo do seu seguimento a Jesus se encontra na experiência mesma do seu próprio crescimento. Ou, dito de forma mais precisa: é o encantamento com o seu próprio crescimento que tende a co-levar essa mesma igreja a querer buscar o "caminho para cima". É o fascínio pelos números, o deslumbramento com o recurso da influência, a possibilidade de adquirir status social, a manipulação de recursos financeiros até ontem inimagináveis, a descoberta da "palavra sagrada" como instrumento de poder e, até, o vislumbre da possibilidade do exercício do poder político que constitui o mapa desta tentação do caminho da arrogância e do orgulho. E, diante do espelho de tantas coisas novas e fascinantes, quem é que vai querer falar em manjedoura? E quem vai querer falar em caminho de cruz? Em arrependimento? Estamos tão encantados conosco mesmos que não percebemos a necessidade de levantar perguntas críticas. Estamos tão fascinados com o nosso novo lugar na sociedade que nem nos passa pela cabeça que Deus não esteja absolutamente contente conosco. Estamos tão envoltos em nossas conquistas que nos parece perda de tempo meditar os Evangelhos na perspectiva de uma necessária conversão . O nosso negócio, assim parece, é ganhar mais gente, conquistar mais espaço, criar mais instituições e institutos e comprar/ construir mais prédios. Esta é, afinal, a nossa hora de sonhar grande.


Eu sou uma dessas pessoas que se alegram com o crescimento da igreja. Aliás, a igreja que desiste de crescer desiste de viver. Mas eu sonho com um crescimento que concilia a quantidade com a qualidade. E tanto um como o outro só podem ser medidos evangelicamente. Ademais, eu me assusto com um crescimento que produz sincretismo por estar alicerçado numa prática pastoral que não consegue sobreviver sem a água ungida, os lenços sagrados, as espadas santas, as curas programadas, os milagres anunciados e os êxtases padronizados. Eu sonho, pois, com uma grande igreja que tem a cara de Jesus e a marca dos Evangelhos. Uma igreja que dignifica o outro e se coloca a serviço do pobre e do necessitado. Uma igreja que cativa pela ternura e sabe caminhar a segunda milha. Uma igreja que abraça os excluídos e encarna uma prática política que tem a marca do profetismo bíblico. Uma igreja que é evangélica porque tem a marca do Cristo dos Evangelhos. Uma igreja de cabeça para baixo... no bom sentido, é claro.


O Evangelho denuncia o "evangélico"

Ser evangélico, então, significa espelhar-se nos Evangelhos. Além disso, significa tornar-se vulnerável diante do próprio evangelho. Reconhecer-se culpado diante do Cristo que revela quem somos. Aceitar a exortação do outro e submeter-se à disciplina do corpo. Disponibilizar-se para o arrependimento e a conversão.


Falar sobre vulnerabilidade nos dias de hoje parece uma coisa tão fora de moda! Coisa de fracos. O negócio das igrejas parece ser falar da conquista, da posse, do milagre, do excêntrico, do poder. Segundo esta interpretação, a igreja está vocacionada para ser forte, rica e poderosa. Pois eu protesto! Protesto por querer permanecer sendo evangélico. Eu me coloco na contramão e quero falar da vulnerabilidade, do caminho da cruz e da necessidade do arrependimento.


A riqueza da igreja se manifesta na sua dependência da graça e na sua disposição para servir. E o poder da igreja está escondido na fraqueza da cruz. É o poder de amar e de se dar. O poder de descer para que o outro possa vir comigo até os pés da cruz. O poder espiritual que sabe embainhar a espada e caminhar consciente para o sofrimento, como o próprio Jesus fez no jardim do Getsêmani (Mt 26.51-56). Aliás, Jesus havia falado sobre isso com muita clareza:

"Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me. Quem quiser, pois, salvar a sua vida, perdê-la-á; e quem perder a vida por causa de mim e do evangelho, salvá-la-á. Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro e perder a sua alma?" (Mc 8.34a-36).

É por esta compreensão evangélica do que vem a ser evangélico que eu fico tão escandalizado e tão triste com todas essas escaramuças ocorridas entre a Rede Globo e a Rede Record. Que a Rede Globo tenha feito o que fez, isto não nos deveria escandalizar. Ela simplesmente mostrou o que ela é e que sabíamos que ela era. Mas que a Record tenha agido igual à Globo-- isto, sim, nos deveria escandalizar. Afinal, ela simplesmente não foi evangélica. Ambas as redes usaram os mesmos instrumentos, mesmo que o conteúdo delas tenha sido diferente. Ambas foram mundanas, além de protagonizar um jornalismo de baixo nível. Aliás, não seria verdade que o programa 25ª Hora, apresentado pela Rede Record, teria atingido o mais baixo nível entre todos os programas que trataram do assunto?


A questão com a Rede Record é ainda mais problemática por ser ela identificada com a Igreja Universal do Reino de Deus. Esta, por sua vez e através da sua postura e procedimento, também comprometeu o ser evangélico. As fitas veiculadas pela Rede Globo falavam por si e eram vergonhosas no seu conteúdo. Indefensáveis. Mas as fitas, como sabemos, não existem por si. Elas revelam o caráter e a ideologia de uma igreja, nenhum dos quais resiste a uma análise evangélica. No entanto, como se isto não fora suficiente, os meios de comunicação da igreja procuraram justificar o conteúdo das fitas. Ora, querer explicar teologicamente a vulgar expressão, usada pelo bispo Edir Macedo, "ou dá ou desce", além de ser ridículo, é vergonhoso.


E hora de conversão

A dificuldade e a confusão desta hora certamente não geram uma alternativa fácil. Os interesses envolvidos são enormes e as polarizações são agudas. Ademais, é preciso lembrar que, como disse Jesus, "aquele que dentre vós estiver sem pecado, seja o primeiro que lhe atire pedra"(Jo 8.7). Ou seja: é preciso manter a consciência da vulnerabilidade própria e de que todos vivemos da graça de Deus.


A própria graça de Deus, no entanto, nos oferece o caminho da possibilidade e da esperança. Este caminho se chama arrependimento e conversão. Inclusive a conversão pública. Nós estamos tão acostumados a convocar os "outros" a este arrependimento e a esta conversão, esquecendo-nos (ou querendo esquecer) que nós também precisamos passar por este caminho. Ser evangélico, neste momento, significa, portanto, disponibilizar-se para o arrependimento e a conversão. Conversão do coração e da prática pública da fé. Conversão metodológica no que se refere à própria evangelização. Conversão ética no que tange ao relacionamento com o outro e à administração dos recursos à igreja confiados. Conversão estratégica no sentido de que a igreja se coloque a serviço do pobre e do pequeno. Conversão política no objetivo de que a nossa vida e atuação pública reflitam o conteúdo do evangelho e os valores do Reino de Deus. Evangelicamente, não há outro caminho, seja a nível individual, seja a nível coletivo. E isso vale para todos e para qualquer um de nós.


Além do mais, só o arrependimento e a conversão abrem o caminho para o futuro, a esperança e o legítimo serviço cristão. Digo "o futuro" porque a ele está vinculada a questão da credibilidade. Digo "a esperança" porque esta renasce do perdão que Deus concede ao contrito. E digo "o serviço" porque nele está embutido o privilégio e a vocação para o exercício do ministério cristão. Este se assume em nome de Deus, deve se espelhar nos Evangelhos e refletir o semblante de Jesus, a cada geração e em cada um dos nossos contextos de vida. Este não é um caminho fácil, mas é o único caminho que, nesta hora, pode se chamar de evangélico. Este é o caminho da cruz. É o caminho de cabeça para baixo... no bom sentido, é claro.

 

Publicado originalmente na Revista Ultimato.

Comments


bottom of page