Senhor, o meu coração não é orgulhoso,
e meus olhos não são arrogantes.
Não me envolvo com coisas grandiosas
nem maravilhosas demais para mim.
De fato,acalmei e tranquilizei a minha alma.
Sou como uma criança recém-amamentada por sua mãe; a minha alma é como essa criança.
Ponha a sua esperança no Senhor, ó Israel,
desde agora e para sempre!
Eu olho para o quadro, fascinada: eu sou essa mãe, e esse bebê é cada um dos meus quatro filhos, amamentados e adormecidos em meu seio!
Quem, senão uma mãe, seria capaz de captar e retratar, dessa forma, um momento tão profundo como este? Só um artista com alma de poeta, alguém cujo olhar agudo e perceptivo é capaz de deslumbrar-se com o grande cenário dos acontecimentos e pousar num pequeno detalhe do cotidiano do outro, uma criança profundamente adormecida no colo de uma mulher. Mas ele não vê apenas uma mulher. Vê ainda mais: vê mãe e filho. Vê ternura e confiança, cuidado e contentamento. Satisfação plena. Serenidade e entrega. E então, naquele pequenino que descansa, tranquilo e saciado, aconchegado nos braços de sua mãe, o observador enxerga a sua própria alma. Uma parábola da sua própria vida.
Pois, que homem grande (ou, quem sabe, uma grande mulher) ousaria descrever-se como um bebê frágil e completamente dependente, ou identificar-se com uma simples mãe que acalenta o seu filhinho? Só alguém que já desfilou pela vida com “olhos altivos e arrogantes” e fascinado com “coisas grandiosas e maravilhosas”, e então foi-se deparando com precipícios traiçoeiros e escaladas altas demais, que o seu ego inflado e a sua prepotência não tinham o poder de derrotar. E assim, foi descobrindo a si mesmo, com suas carências e limitações. Este foi o desafio constante e contínuo de Davi, o rei-poeta a quem se atribui a autoria deste Salmo 131, para ser cantado em coro pelos peregrinos a caminho de Jerusalém.
Às vezes, lendo este salmo, eu imagino Davi caminhando junto com o povo em peregrinação. Caminhando e recordando, como num retrovisor... O dia em que, muito jovem, foi ungido para ser rei de uma grande nação. O dia em que se tornou um grande herói nacional ao enfrentar e matar o gigante que apavorava os valentes guerreiros do seu povo. As grandes batalhas, derrotas e vitórias que marcaram sua vida e seu reinado. “Quem diria que eu, aquele caçulinha atrevido e desprezado pelos meus irmãos, acabaria me envolvendo com coisas tão grandiosas e importantes, e que o meu nome constaria no topo do panteão de honra da história do meu povo!”
Ao ler tantos salmos que revelam altos e baixos na vida deste grande rei, eu me pergunto quantas lutas internas Davi enfrentou e quantas escolhas ele teve de fazer para, apesar de si mesmo, tornar-se um homem segundo o coração de Deus. Parece-me que nesta conversa com Deus, retratada aqui, ele compartilha conosco e com o seu povo algumas lições valiosas. Este homem grande – “o Cara!” – aprendeu, a duras penas, que um coração orgulhoso e encantado consigo mesmo nos afasta do outro e do Senhor, a nossa Fonte de Vida. Aprendeu que arrogância é rejeição contra Deus, que se agrada de um coração quebrantado e contrito (Sl 51:17). Aprendeu que a autossuficiência e a fome insaciável de lutar, conquistar e sugar sempre mais, de envolver-se com coisas maravilhosas demais, extrapolando os limites entre aquilo que eu necessito e a plenitude de vida que só Deus pode e quer me dar, acaba levando ao sufocamento e à morte.
Davi descobriu o antídoto para a ansiedade e o segredo do verdadeiro descanso. E os simboliza nesta criança relaxada no colo de sua mãe. Algumas versões falam em criança desmamada (aquela que ainda carece da mãe, mas já não depende apenas do leite materno como fonte de nutrição); outras, em criança recém-amamentada. Em ambos os casos, a criança experimenta calma, tranquilidade e descanso em seus braços, porque está saciada.
Olhando para este quadro, volta-me à memória a versão de Almeida que eu decorei e trago no coração desde a minha infância (ARC): “Pelo contrário, fiz calar e sossegar a minha alma. Como a criança desmamada se aquieta nos braços de sua mãe, como essa criança é a minha alma para comigo.” Eu vejo um cenário duplamente ativo: a criança faminta que se aquieta e para de espernear e a mãe, agora mais calma, finalmente consegue acalentar o filho e saciar a sua fome. O acolhimento mútuo e sereno que produz saciedade e vida.
O salmista descobriu o antídoto para a ansiedade prepotente que leva à morte da alma; e, junto com ele, o segredo para o verdadeiro descanso. Aquietar-se e descansar nos braços de Deus não é uma desistência irresponsável e imatura de quem não tem perspectivas, mas sim uma escolha (nem sempre serena e continuamente desafiadora!) de quem aprendeu a esperar e confiar na Fonte inesgotável da vida. E esse segredo imutável ele compartilha com o seu povo:
“Ponha a sua esperança no Senhor, ó Israel, desde agora e para sempre!” Nota: A imagem que ilustra este texto é uma pintura feita pela artista plástica Silvana Bezerra. Reproduzida com permissão.
Publicado originalmente no Portal Ultimato.
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