Um dia destes vi um carro passar bem do meu lado, em plena contramão, buscando acessar uma via próxima. “Que absurdo!”, pensei. “E perigoso! Quem faria uma coisa dessas?!” Mas tem gente que faz; e até poderia ser eu, ainda que dando uns jeitinhos “mais leves”.
Até constrange iniciar este artigo com algo tão banal como atravessar um pequeno trecho na contramão. Mas a maioria das vezes em que andamos na contramão da vida é para atravessar “só um trechinho”: burlar uma leizinha sem que ninguém veja, passar na frente com sutil rapidez, omitir um detalhe em busca de promoção... Assim vivemos nesta terra do jeitinho.
Eu podia começar com algo dramático como o genocídio na Ruanda. Estarrecido diante de uma igreja onde foram mortas 50.000 pessoas, eu não conseguia entender como algo assim era possível. Ou podia falar do Camboja, onde um museu expõe milhares de ossos de pessoas mortas pelo regime de Pol Pot, que a partir de 1975 liderou o Khmer Vermelho e matou mais de dois milhões de pessoas do seu próprio povo.
É óbvio que não se pode comparar uma furadinha de sinal ao genocídio de uma nação. Mas é inegável que uma sucessão de furadinhas pode gerar o caos não apenas no trânsito mas nos relacionamentos humanos. O genocídio da Ruanda foi sendo construído por anos, num contínuo incitamento à discriminação étnica.
A voz de Deus e o fascínio da árvore
Ao refletir sobre Gênesis 1 e 2 tivemos um vislumbre da beleza, do ritmo e do espaço em que Deus provê recursos para todos e nos convida a construir uma sociedade digna de homens e mulheres criados segundo a Sua imagem.
Mas não podemos olhar para essas narrativas como se fossem uma descrição romântica da natureza. Elas são um mapa que testemunha da presença criadora de Deus, bem como uma expressão da realidade humana em sua beleza, possibilidades, riscos e vocação. Logo adiante Gênesis nos confronta com uma realidade de rebeldia, violência e morte que, precisamos reconhecer, estão latentes em nós mesmos. O relato da criação fala também do pecado e de suas consequências para a vida: é o carro na contramão, a bala perdida que mata a criança, o pai que bebe e bate nos filhos, a mãe que dá mais atenção ao cão da família do que aos filhos. Esta é a realidade de todos nós que, tal como Adão e Eva, não conseguimos viver de forma simples e satisfatória no universo de possibilidades e recursos ao nosso redor sem comprometer a nossa liberdade e avançar para aquilo que não é nosso:
O Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo. E o Senhor Deus ordenou ao homem: “Coma livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comer, certamente você morrerá.” (Gn 2:15-17)
Esta palavra nos confronta com a marca da nossa própria identidade, ao dizer que estamos cercados de possibilidades e temos a liberdade de escolher. Essa escolha visa a nossa própria sobrevivência: “Coma livremente de qualquer árvore”, diz Deus ao ser humano, que foi colocado no jardim para cuidar dele e cultivá-lo. Há espaço e recursos para o usufruto da vida e para a sobrevivência de todos.
Mas a opção do ser humano foi ignorar esse universo de recursos e possibilidades e aventurar-se rumo à “árvore proibida”. É lá que estão o fascínio e a obsessão que o cativam e aprisionam. É para lá que ele vai. É para lá que sua liberdade o levou: Quando a mulher viu que a árvore parecia agradável ao paladar, era atraente aos olhos e, além disso, desejável para dela se obter discernimento, tomou do seu fruto, comeu-o e o deu a seu marido, que comeu também (Gn 3:6). O fascínio venceu a realidade. A obsessão cativou a possibilidade de decidir. A tentação de chegar à via desejada pela contramão foi mais forte. A promessa de ganhar dinheiro fácil fazendo um pequeno negócio escuso foi afagando o coração até tomar conta do desejo. O jeito como aquela menina mexia o corpo foi irresistível... E assim a história continua e evidencia que algo muito profundo e central quebrou: o outro tornou-se um estranho e Deus, alguém de quem é preciso se esconder. A liberdade saiu pelo ralo e nem adiantou querer se esconder. “O fruto foi comido” e não dá para desfazer o ato. As consequências são inevitáveis (Gn 3:7-10):
Os olhos dos dois se abriram, e perceberam que estavam nus; então juntaram folhas de figueira para cobrir-se.
E as palavras para Deus foram: Ouvi teus passos no jardim e fiquei com medo, porque estava nu; por isso me escondi.
Enquanto escrevo, a tristeza me invade. Tudo mudou tão de repente e tão profundamente! O paraíso estava desenhado e me cativava a viver com liberdade, amplidão de recursos e a vocação de ser mordomo de Deus neste belo universo. E aí sujou: me vi ladeado por um Tietê malcheiroso e coberto de lixo boiando sobre suas águas imundas. Acordei para a realidade. Os limites que deveriam proteger foram ultrapassados e a obsessão da “grama mais verde” tomou conta. É verdade! Assim somos nós. Deixamos a liberdade se esvair, excluímos o outro e nos escondemos de quem nos criou.
Mas ainda há uma esperança. Deus não deixa de caminhar no nosso jardim nem desistiu de chamar: Onde está você? É respondendo a essa voz que vamos reencontrar o caminho e a vocação. Deus nos dá uma nova alternativa e esta se chama Jesus.
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Publicado originalmente na Revista Ultimato
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